Folha de S. Paulo


Criança boa

Assisti, na semana passada, ao vídeo que bombou na internet em que um garoto, com seus sete anos, se descontrola em uma escola e atira vários objetos ao chão. Eu, apesar de saber previamente o que iria encontrar, me obriguei a ler também a maioria dos comentários escritos sobre o vídeo.

Tive de ler coisas absurdas como "polícia para nossas crianças!", "surra e mais surras nelas!" e "abaixo esse tal de Estatuto da Criança e do Adolescente", que vi ser chamado de "Estatuto do Capeta Atrevido". Essa é apenas uma síntese, para poupá-lo, caro leitor, de todo o ódio que foi colocado naqueles comentários.

Não temos mais nenhuma compaixão por nossas crianças. Muitas pessoas nem sequer sabem o que é compaixão. Um jovem me disse que ter compaixão por uma pessoa é ter pena dela, e ele se coloca totalmente contrário a esse sentimento.

Sim: a pena é um sentimento, e a compaixão também o é. Mas a compaixão vai além: é um sentimento e também uma virtude, ou seja, exige esforço pessoal para que se desenvolva. Em uma época em que os sentimentos valem mais do que as virtudes, a compaixão é mal vista.

Ter compaixão é compartilhar o sofrimento do outro, ter disponibilidade para ajudá-lo, ter respeito pela situação que ele vive. E nós não somos mais sensíveis ao sofrimento das crianças, tampouco nos dispomos a ajudá-las. O vídeo citado nos mostrou o nosso retrato.

Para boa parte da nossa sociedade, hoje, criança boa é criança invisível: não dá trabalho, é sempre agradável no convívio, obedece aos adultos prontamente, sem pestanejar, questionar ou se distrair. E deve ser assim em casa ou na escola, tanto faz.

Criança boa nasce boa: não precisa de adultos para ser introduzida na convivência social. Também não pode ceder nunca a seus próprios caprichos e impulsos, não pode reagir à violência –da realidade ou simbólica– do contexto em que vive. Criança boa deve ser bem diferente do adulto, que se dá o direito de agredir quando se sente ameaçado, e que vive transgredindo leis e regras sociais. Criança boa precisa suportar passivamente as ameaças que sofre nos ambientes que frequenta.

Na escola, criança boa é aquela comandada por controle remoto, que deve estar sempre em poder dos pais. Quando a criança se descontrola, como vimos no vídeo, foram os pais que falharam: essa é a nossa visão.

Pouco importa se, em casa, a criança tem a melhor educação que seus pais podem lhe dar: quando está na escola e desobedece, desafia, transgride regras, ela é o capeta. Precisa de polícia, de castigo ou de medicação, sem contar o julgamento que fazemos de suas famílias.

Muitas escolas sequer sabem que funcionam como um estopim para o descontrole de muitas crianças, sem que tenham de fazer nada além de ser como já são: preocupadas consigo mesmas, com seus estatutos, regras, planejamentos, rankings, etc., e sem olhos e ouvidos para as crianças.

Há crianças difíceis? Sim. Mas Fernando Savater, pensador contemporâneo, esclarece: "[...] Não são as crianças que se rebelam contra a autoridade educacional, são os adultos que as induzem a se rebelar, precedendo-as nessa rebelião que os desvencilha da tarefa de lhes oferecer o apoio sólido, cordial mas firme, paciente e complexo, que as ajudará a crescer adequadamente no sentido da liberdade adulta".


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