Folha de S. Paulo


Pesadelo no Qatar

Impressionantes as notícias que revelam as condições em que trabalham os operários envolvidos na construção de infraestruturas - e, poderemos também dizer, projectos megalómanos? - para a Copa do Mundo. Em São Paulo, mas especialmente no Qatar, os relatos remetem-nos para um universo paralelo onde não existem direitos básicos, e muito pior, onde conceitos como a decência, compaixão e dignidade humana são ignorados ou desconhecidos.

A descoberta de uma espécie de "escravatura moderna" na preparação da Copa de 2022, como denunciou uma investigação jornalística do diário britânico The Guardian, tem de motivar uma reacção mais forte do que aquela que observamos nos dias seguintes. As estimativas que sugerem que a construção dos estádios para a Copa do Qatar poderá custar mais de 4000 vidas - de imigrantes do Nepal, Índia ou Sri Lanka - são absolutamente inaceitáveis e confrangedoras: não chega exprimir choque e preocupação e lançar um inquérito que provavelmente não terá consequências.

As alegações de corrupção e suborno, e as justas críticas pela decisão da Fifa de atribuir a organização do campeonato do mundo a um país cujas temperaturas podem ascender aos 50 graus centígrados, chegam a parecer um detalhe menor quando comparadas às revelações desta semana: homens a viver em situação degradante e a trabalhar sob ameaça e coerção, para erguer estádios sumptuosos nas areias do deserto.

A situação brasileira, não sendo tão extrema, também merece reprovação. A pronúncia do ministério do Trabalho deixou pouco lugar a dúvidas: também foram "condições análogas à escravidão" que foram observadas pelos fiscais que avaliaram as obras de ampliação do aeroporto internacional de Guarulhos. É certo que o caso só marginalmente tem a ver com as instâncias futebolísticas - não foi nas obras dos estádios que foi detectada a irregularidade. Mas será que não devemos manter os olhos abertos também para o que se passa aí?

O sindicato que representa cerca de 50 mil jogadores de futebol internacionais lançou imediatamente uma nota de alarme com a "brutal exploração" de trabalhadores imigrantes e o desrespeito não só das normas legais como dos valores universais que também servem de alicerce à competição e saudável prática esportiva. Convém não esquecer que, antes desta polémica laboral, a organização do Qatar já tinha sido questionada por grupos de defesa dos direitos LGBT por causa do tratamento dos homossexuais, ou por adeptos judeus por causa da posição política face a Israel.

Lamentavelmente, o universo esportivo vive imerso em escândalos: falta de transparência, intolerância, racismo, corrupção, hooliganismo não há nada nessa lista que não tenha afligido já a Fifa, que seguramente não precisava de se preocupar com um novo item escravatura.

Compreendo os argumentos da Fifa quando decide "investir" em territórios antes inexplorados. Só os muito ingénuos não encontram nessa estratégia uma preocupação financeira e comercial dos donos do futebol. Mas não deixa de ser um facto que, em muitos casos, a organização de um mega-evento mundial é também uma oportunidade para o desenvolvimento local, para o conhecimento de novas culturas, para a aproximação dos povos. E é por isso que a notícia que veio do Qatar é tão horrorosa - porque deita tudo isto a perder.


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