Folha de S. Paulo


A quadra da quadrilha

Quando somos crianças desejamos que seja Natal todos os dias; quando somos adultos achamos que uma vez por ano talvez seja demais.

Há uma razão para isso: o Natal é a festa da família. Devia ser a festa das pessoas que não conhecemos bem. A gente ia comportar-se melhor. Com pessoas de fora a gente faz cerimônia. Fala mais baixo. Não traz para a discussão brigas de 1982 —até porque em 1982 a gente ainda não conhecia essas pessoas.

Desconfio sempre de alguém que me acolhe em determinado sítio dizendo: "Seja bem-vindo, isto aqui é tudo uma grande família". Isto é maneira de receber? Quem diz isso, como é óbvio, não conhece a minha família. Nem a maior parte das outras.

Luiza Pannunzio/Editoria de Arte/Folhapress

Em geral, a pior coisa que pode acontecer a alguém é ter família.

Qual é o primeiro crime relatado na Bíblia? Um irmão assassina outro. Caim mata Abel, o seu irmão, não mata Reginaldo, um colega de trabalho. Na mitologia grega é a mesma coisa: Cronos castra Urano, seu pai. Não castra Vinícius, o seu açougueiro.

Em Shakespeare, o mesmo: Hamlet pondera matar Cláudio, seu tio, que por sua vez matou Hamlet sênior, seu irmão. Não deseja matar Chico, o síndico do seu prédio, que por sua vez não matou Paulão, o entregador de pizza.

Há notícia de moços que foram criados por lobas e acabaram por fundar a cidade de Roma. Mas Palermo, na Sicília, eu aposto que foi fundada por gente criada por seres humanos. A loba é uma progenitora respeitável.

Raramente aparece na toca bêbeda ou desbarata o salário no cassino.

As famílias são, de fato, um perigo real que não se deve menosprezar. A esmagadora maioria dos homicídios ocorre, aliás, dentro de portas. Quantas vezes lemos manchetes que dizem: "Homem mata mulher e sogra"? Inúmeras. E quantas vezes lemos: "Homem mata mulher e sogra de outra pessoa"? Bem menos.

E parece-me sensato que, a ter de matar alguém, o homicida opte por um familiar. O homicídio acaba por ser uma atividade demasiado íntima para ser levada a cabo com estranhos. Até é falta de educação.

A mesa de Natal devia ser integralmente composta por gente que mal se conhece. Só assim seria possível gerar o ambiente de respeito que a celebração do nascimento do Messias merece.

Seria uma festa mais calma e até mais fraterna. E a fraternidade é um valor que prezo muito. Sobretudo porque sou filho único.


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