Folha de S. Paulo


Em questões de gênero, ciência mostra que os extremos estão errados

Que o leitor perdoe a franqueza, mas dá desgosto ver como as pessoas –em ambas as pontas do espectro ideológico– surtam com esse negócio de ideologia de gênero e outras questões candentes relacionadas à sexualidade.

Que tal colocar um pouco de ponderação e rigor científico na história? Eis uma brevíssima lista de ferramentas conceituais que vale a pena ter à mão antes de sair se descabelando "em defesa da família" ou "contra o patriarcado".

1) Pessoas são indivíduos, não médias estatísticas.

A complexidade dos corpos e das mentes é gigantesca e depende de fatores, tanto inatos (como a genética) quanto externos (família, educação etc.), que são individualizados, em larga medida.

A implicação que isso tem para qualquer afirmação de natureza essencialista –que enxerga uma essência imutável– sobre o comportamento e os papéis de homens e mulheres deveria ser clara. Existem, por exemplo, algumas evidências científicas de que, em média (eis uma expressão crucial!), os membros de cada sexo começam a vida com vieses cognitivos e interesses ligeiramente diferentes entre si, e que isso pode ser reforçado ao longo do crescimento.

Meninas, pelo que sabemos, são um pouco mais fluentes verbalmente e mais espertas na hora de captar as emoções alheias, enquanto os garotos se viram melhor em tarefas que envolvem o raciocínio espacial. Mas, de novo, tudo isso é média estatística –não um destino inescapável decretado pelo Olimpo.

Eu me viro razoavelmente bem com palavras e sou capaz de me perder dentro do meu próprio banheiro, embora seja portador de um cromossomo Y, a marca genética da masculinidade em humanos. Aliás, se eu fosse uma média populacional, e não um indivíduo, eu seria metade homem e metade mulher, o que não parece ser o caso, pelo que me lembro da última vez que fui ao banheiro. Esse princípio vale para quase tudo o que importa em nível individual.

2) Seres humanos são entidades biológicas e culturais ao mesmo tempo, o tempo todo.

Somos seres vivos, mamíferos e primatas, produtos de um processo evolutivo de bilhões de anos, tal como os outros animais da Terra. Isso significa que é improvável que o nosso comportamento não tenha bases biológicas, ainda que estejamos longe de elucidá-las totalmente.

Outros animais, aliás, também têm tradições culturais –embora só nós tenhamos levado tão longe a capacidade de dar significado a elas e de transformá-las numa espécie de universo paralelo que nossas mentes habitam.

Na prática, portanto, os papéis de cada gênero são modificados o tempo todo pelas mutações da cultura –mas eles dependem do "molde" biológico inicial para tomar forma. Ignorar qualquer um dos lados da equação é uma receita para simplificar demais a realidade.

3) Existe, existiu e sempre existirá variabilidade natural.

Os dados de outras espécies animais e as comparações entre diferentes sociedades humanas que o relacionamento entre indivíduos do mesmo sexo e aparentes inversões de papéis de gênero são parte da variabilidade natural.

Essa variação pode ser influenciada por aspectos sociais e culturais, mas dificilmente seria criada por eles. Versões extremas da ideologia de gênero segundo as quais absolutamente tudo é construção social são apenas má ciência –mas temê-las como o bicho-papão que transformará todos nós em andróginos futuristas é infundado. Até hoje, todos os que apostaram numa natureza humana infinitamente maleável perderam feio.


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