Folha de S. Paulo


Sem fatos nem imaginação

Não me admira nem um tiquinho que a ciência brasileira esteja à míngua, vendendo o almoço para pagar a janta, sinceramente. O motivo é simples. Gente muito melhor do que eu já resumiu o empreendimento científico como o namoro harmônico entre o respeito aos fatos e o exercício da imaginação, duas capacidades que até um sujeito munido de microscópio eletrônico teria dificuldade para encontrar na elite política brasileira de hoje.

Sim, eu sei que políticos podem ser primatas surpreendentemente imaginativos quando precisam esconder dólares (na Suíça ou na cueca), amantes e relacionamentos homossexuais. Uma passada de olhos pela biodiversidade de grandes símios que ora habita as selvas dos Três Poderes, no entanto, deixa claro que à imensa maioria deles falta o tipo mais essencial e ousado de imaginação, aquele que pode mudar radicalmente e para melhor a trajetória de um país (e, de preferência, a do mundo). De respeito aos fatos, então, não se vê sombra.

Só alguém profundamente sectário em matéria política não seria capaz de enxergar que esse problema antecede em muito o governo federal interino (ainda que pareça ter realizado a proeza de se agravar com ele). Um dos momentos mais constrangedores das gestões Dilma foi quando a presidente afastada classificou energias renováveis como "fantasia", seguido de perto pela convicção inicial do ministério da Saúde de que o zika era um vírus mais brando que o da dengue.

A falta de imaginação (a incapacidade de cogitar que um vírus pouquíssimo conhecido poderia, sei lá, fazer alguma coisa inesperada...) e de respeito aos fatos (a indústria chinesa entupindo o mundo de painéis solares e turbinas eólicas já faz um tempinho) não só nos fizeram passar vergonha como nos presentearam com uma epidemia de microcefalia e deram nosso dinheiro para empreiteiro de hidrelétrica transformar em charuto de cem reais. Superlegal.

A ascensão de Temer e a criação do misterioso híbrido MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações; pronuncia-se "emecêtique"; fico imaginando o ministro Kassab com tique nervoso toda vez que ouço o acrônimo) deixou os pesquisadores brasileiros com medo de que as verbas federais para ciência, já reduzidas a um conta-gotas, fossem ainda mais represadas. O temor é legítimo, mas algo me diz que, além de se opor à fusão de ministérios, ou mesmo em vez de lutar contra ela, a principal batalha que a comunidade científica deveria estar travando envolve forjar uma visão diferente do que o país pode ser - e é uma visão que jamais terá chance de decolar sem a ciência.

Para ficar apenas no exemplo do zika e de outras doenças tropicais que hoje nos fazem arrancar os cabelos, é hora de transformar o limão numa limonada. Com a maior biodiversidade do planeta (inclusive no campo dos micróbios e dos vírus, para o bem e para o mal) e pessoal talentosíssimo nas áreas de genômica e bioquímica, é inconcebível que a gente não enxergue o potencial para criar uma indústria biotecnológica que vença os vírus aqui e lá fora e crie empregos qualificados.

Lampejos de que isso é possível estão na nossa cara - não passa uma semana sem que pesquisadores brasileiros elucidem com competência parte dos ardis do zika, por exemplo. Mas eles jamais ganharão massa crítica se os eleitores continuarem achando que entender de boi ou de bala é qualificação suficiente para uma cadeira na "House of Cunha".


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