Folha de S. Paulo


Darwin, autor da Bíblia

"Ergue os olhos para o céu e conta as estrelas, se as podes contar. Assim será a tua posteridade." A promessa, que teria sido feita pelo próprio Deus a Abraão, ancestral lendário dos judeus (e dos árabes), funciona como uma espécie de "certidão de nascimento" da fé judaico-cristã. Mas também vale como microcosmo de um fato surpreendente: várias das narrativas mais importantes da Bíblia adotam uma perspectiva profundamente darwinista.

Ao afirmar isso, refiro-me em especial ao Antigo Testamento, ou Tanakh, como dizem os judeus de hoje. E, quando falo em darwinismo, é óbvio que não estou querendo dizer "sobrevivência dos mais fortes", "guerra de todos contra todos" e outras bobagens normalmente usadas para distorcer a teoria da evolução.

Na verdade, uma das chaves do pensamento de Darwin é a importância do sucesso reprodutivo diferencial, ou seja, da capacidade de alguns organismos se reproduzirem com mais eficiência do que outros (os meios para isso não precisam ser violentos nem maldosos). Ora, até uma leitura casual dos textos bíblicos é suficiente para mostrar que essa é a principal preocupação de Deus e dos homens na narrativa.

De fato, é justamente a promessa de deixar uma descendência numerosa, e não uma vaga esperança de eternidade no céu, que leva Abraão a deixar sua terra natal na Mesopotâmia e rumar para o atual território israelense-palestino (e isso numa fase da vida em que tanto ele quanto Sara, sua mulher, já idosos e sem filhos, tinham abandonado as esperanças de ter algum sucesso reprodutivo).

Nas gerações seguintes, as principais dores de cabeça dos filhos e netos de Abraão não têm a ver com a falta de água para os camelos, mas com problemas de fertilidade e, como diriam os biólogos de hoje, investimento parental (ou seja, o quanto os pais "gastam" com os filhos, considerando o "retorno" em descendentes que provavelmente terão).

As mulheres de Jacó disputam tanto a atenção do marido quanto a honra de gerar o maior número possível de meninos (numa sociedade que permite a poligamia, filhos homens são a principal receita para o sucesso reprodutivo elevado). Aliás, Jacó só acabou se casando com as irmãs Lia e Raquel porque Labão, o pai das moças, sabendo que a primeira não era muito bonita, enganou o patriarca para que ele pensasse estar levando a bela Raquel para a cama na noite de núpcias (é o clássico caso do genitor que não quer desperdiçar seu investimento parental).

Quando a família de Jacó (também conhecido como Israel) se fixa no Egito, é a sua fertilidade superabundante que acaba desencadeando o drama do Êxodo: após algumas gerações, eles se multiplicam a tal ponto que os egípcios passam a temer que os israelitas assumam o controle do país – não é para menos, já que, a essa altura do campeonato, os descendentes de Abraão e Sara somariam 600 mil homens adultos, sem incluir na conta mulheres e crianças. Não por acaso, o faraó contra-ataca ordenando o afogamento dos bebês do sexo masculino. Teria dado certo se a filha do rei não resgatasse do Nilo um bebê chamado Moisés.

A centralidade da reprodução em toda essa saga é tamanha que, quando alguém tem de fazer um juramento especialmente solene, o costume não é jurar por Deus, mas pondo a mão "debaixo da coxa" um eufemismo para, bem, o órgão sexual masculino, visto como a fonte da fertilidade.


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