Folha de S. Paulo


Diplomacia à mesa: a comida como elemento de guerra e paz

Johanna Mendelson Forman acredita que o "mundo começa em uma mesa de cozinha".

A professora adjunta do departamento de relações internacionais da American University, em Washington, toma emprestado a frase de um poema de Joy Harjo para ilustrar o seu trabalho à frente de uma disciplina inédita.

Desde 2014, ela ministra o curso "Conflict Cuisine - An Introduction to War and Peace around the Dinner Table" (Culinária de Conflito: uma Introdução à Guerra e à Paz ao Redor da Mesa de Jantar, em tradução livre).

Mendelson Forman usa a sala de aula e suas andanças pelo mundo para promover a "gastrodiplomacia" como "soft power", esforço diplomático que não se utiliza da força, em um mundo convulsionado por conflitos e em meio à diáspora de refugiados.

"A diplomacia culinária acontece em vários níveis e o mais familiar deles é nos jantares presidenciais e de reis para chefes de Estado", explica a consultora sênior em segurança alimentar do Stimson Center, em entrevista à Folha por telefone desde Washington.

"A comida como ferramenta de diplomacia não começa nos tempos modernos, mas na Antiguidade. Os romanos costumavam dar festas, banquetes."

Também especialista em questões se segurança e democracia pós-conflitos, com atuação no Caribe, América Central e Brasil, ela lembra que os franceses, por exemplo, são mestres na arte de fazer política à mesa, entre pratos suculentos e brindes. "Comida tem poder de persuasão. É muito mais fácil falar de assuntos espinhosos dividindo uma refeição", completa.

É o que a professora vem plantando na cabeça de estudantes interessados em prevenção de conflitos, segurança alimentar e política externa: a comida como um ferramenta para entender contextos geopolíticos e socioeconômicos.

Para ilustrar a teoria, Mendelson Forman usa uma máxima famosa na capital norte-americana: pode-se dizer onde há um conflito no mundo pelos novos restaurantes étnicos na área metropolitana de Washington.

Para a professora, a variedade étnica da culinária americana está intimamente relacionada às vítimas de conflitos globais, tais como a guerra do Vietnã, a invasão soviética no Afeganistão, a guerra civil na Etiópia ou conflitos na América Central.

"Um dia, pensei: eu posso dar um curso sobre isso em Washington, pois depois da Guerra Fria, vi imigrantes vietnamitas, salvadorenhos, armênios, afegãos, etíopes que deixaram de zonas de conflitos abrir seus restaurantes aqui."

Um fluxo que se tornou menor desde o 11 de Setembro quando a política imigratória americana ficou mais restritiva.

No entanto, Mendelson Forman encontra em Washington e arredores chefs e cozinheiros dispostos a dividir experiências e testemunhos no ambiente universitário.

"Meus alunos aprenderem sobre conflitos e também provam a comida destes países para entender o tipo de cozinha e de cultura que os imigrantes deixaram para trás."

Um fator importante, ela ressalta, é a memória e a tradição culinária, que se perpetuam entre gerações, até mais do que o idioma da terra natal. "Na segunda geração, talvez, a pessoa não fale mais a língua, mas ela se recorda dos sabores de casa."

A especialista entende o alimento como terreno para diplomacia, resolução de conflitos, construção da paz e de identidade nacional. Ela também investiga como a comida étnica serve para traduzir e possibilitar a assimilação de culturas estrangeiras.

"A gastro diplomacia pode promover a paz não só por ser uma ferramenta para diplomatas, mas também para os cidadãos que viajam. Compartilhar um prato desperta conversa e compreensão", acredita a professora.

BOAS-VINDAS À MESA

Um exemplo da diplomacia que usa talheres é o movimento intitulado "100 Days, 100 Dinners", surgido logo após a eleição do presidente Donald Trump e a ascensão de uma política anti-imigrante, que tem como ponto alto a construção do muro entre os Estados Unidos e o México.

"Infelizmente, temos agora um presidente que pensa assim. Mas por outro lado há uma série de esforços para criar conexões por exemplo entre a comunidade muçulmana e comunidades cristãs, por meio de jantares.", ressalta Mendelson Forman.

É o caso de refugiados sírios que abrem suas casas e convidam seus vizinhos americanos para comer.

A professora relata sua ida a um destes encontros culinários e de troca cultural. "Foi realmente fascinante ver pessoas de tão diferentes posições políticas comendo juntas. Ao irmos a um jantar deste a ideia é dizer que eles são bem-vindos e mostrar que estamos dispostos a ouvi-los."

Outra iniciativa na mesma linha é o Refugee Food Festival, festival itinerante realizado em junho na Europa, quando restaurantes de 12 cidades, entre elas Paris, Amsterdã, Roma, Atenas, Florença e Madri, abriram suas cozinhas para chefs e cozinheiros refugiados.

Parceria da ONG Food Sweet Food e ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados), o festival tem por objetivo mudar a percepção geral em relação aos refugiados, que se apresentam com seus pratos nacionais, e acelerar a integração profissional de cozinheiros vindo de campos de refugiados.

"Uma novidade no campo do empreendedorismo social é a utilização da comida como um meio para educar as pessoas sobre outras culturas", pontua Mendelson Forman.

Outro aspecto é a culinária virar possibilidade real de emprego e inserção. "Nos campos de refugiados as pessoas estão sendo treinadas em artes culinárias. É um primeiro passo para dar a elas uma oportunidade de sair dali e desenvolver habilidades", constata a americana.

"Quando você se muda para um país estrangeiro, não precisa falar a língua para cozinhar. E aqueles que se profissionalizam podem conseguir licenças de trabalho, vistos. A cozinha passa a ser um meio de sobrevivência."

ARMA DE GUERRA

A comida ou a falta dela também são usadas como armas de guerra.

Na assinatura do e-mail de Mendelson Forman lá está uma frase de lorde Boyd Orr, primeiro diretor-geral da FAO e vencedor do prêmio Nobel da Paz de 1949, que resume bem tal realidade.

"A fome está no cerne dos problemas do mundo. A menos que as pessoas sejam alimentadas, os melhores tratados podem resultar em nada. As pessoas com fome não podem ser satisfeitas por nada além de comida."

A consultora, que já trabalhou no Haiti e em agências das Nações Unidas em áreas de conflito, cita os casos atuais da Síria, na Nigéria e do Sudão.

"No Sul do Sudão, é deliberadamente negado o acesso à comida. Suprimentos não chegam em terras dominados por inimigos do presidente. As pessoas estão famintas, à beira da morte, enquanto o governo bloqueia comboios de alimentos."

O mesmo acontece na Nigéria, segundo ela, onde o grupo terrorista Boko Haram não permite a chegada de comida aos civis.

"Assim como na Síria, quando o governo lança bombas em padarias e lojas de alimentos,pela manhã e à noite, horários em que mulheres e crianças saem para comprar pão e outros alimentos."

Negar comida para civis e militares é crime de guerra, de acordo com o Convenção de Genebra.

Além de ilustrar aulas e ser formalmente incluído no currículo de uma universidade, o tema, assim como as histórias de tempos de guerra e de paz em torno da comida, também vai rechear as páginas de um livro que a professora pretende lançar no próximo ano.

"Eu acredito que a comida constrói pontes e espero que o livro conscientize sobre o objetivo da gastronomia associada à diplomacia, que é ajudar a nutrir as relações diplomáticas em todo o mundo e a convivência entre os povos."

Uma leitura que pode abrir o apetite de políticos, diplomatas e viajantes, além de render bons papos à mesa.


Endereço da página:

Links no texto: