Folha de S. Paulo


Misto de culto e espetáculo, 'Deus É Humor' une fé, riso e atualiza a Bíblia

No princípio era o verbo. "Deus É Humor" é título do livro que o cineasta e roteirista Newton Cannito lançou em 2012.

Cinco anos depois, nascia em 3 junho um espetáculo interativo com o mesmo nome, misto de culto e programa de auditório no qual fé e riso estão em comunhão.

A nova ordem teatral/religiosa, "a seita que dói menos", fica em cartaz até 8 de julho, sempre aos sábados, no Teatro Commune.

Idealizador, apóstolo e animador do projeto, Cannito explica o conceito: "É um encontro semanal de uma comunidade de sentido, formada por pessoas, atores e não atores, que defendem o humor como princípio da existência. Por isso, Deus é humor. Tudo é humor. Você se aproxima de Deus e da transcendência com humor".

A veia humorística está em toda a ritualística, que começa com uma Palavra da Gozação, em vez da Salvação, como no rito católico.

Na sequência, há um stand up para confissão de pecados, inspirado nos tradicionais testemunhos dos cultos evangélicos, em que os fieis vão à frente para compartilhar com os irmãos seus dramas e os ensinamentos.

"É a capacidade de fazer autobullying. A única salvação para a humanidade é a cura pelo humor", preconiza o apresentador do espetáculo interativo.

TROPICALISMO RELIGIOSO

O público é convidado a confessar pecados e a debater temas filosóficos nos encontros definidos "como movimento político e estético inspirado no tropicalismo".

O objetivo é debater fé, espiritualidade e temas atuais, como o ódio entre correntes políticas opostas. "Fazemos espetáculos de louvor à vida. Assim como no tropicalismo, buscamos uma síntese de tudo que é diferente e contraditório", explica Cannito.

A Folha acompanhou a gestação do projeto em reuniões semanais, sempre às segundas-feiras. A primeira aconteceu em 7 de março.

Estavam reunidos ali cerca de 20 pessoas, de diferentes perfis e profissões, que foram convidadas a compartilhar suas crenças.

Para inspirar os convidados, Newton falou de sua própria espiritualidade: "Eu sempre fui fanático religioso. Desde criança, eu rezava terço toda noite. Meu pai era ateu, mas eu tinha essa conexão. Tinha visões de Nossa Senhora, de espíritos e começava a rezar."

O cineasta nasceu católico, fez primeira comunhão. Aos 12 anos, virou ateu. Aos 20, definia-se como o típico doidão.

"Aos 33, comecei a tomar ayahuasca [chá alucinógeno usado em rituais religiosos, como o do Santo Daime] e fui melhorando. Quando você busca a transcendência, você busca qualquer coisa. Seja na religião ou até em movimentos políticos."

E o que tem o humor a ver com tudo isso? "Acredito que é ponto de vista mais próximo de Deus, por nos colocar acima dos fatos", diz Cannito. "O humor como princípio da literatura moderna a partir de Cervantes. É também o principio da democracia, de conseguir ver do alto, de relativizar, entrar em todas as vozes e pontos de vistas e estar tranquilo com isso."

Como animador do primeiro "culto" da Deus É humor, o idealizador da nova seita explicou aos convidados a sua percepção de um processo evolutivo do Criador ao longo da história da humanidade.

"A ideia de Deus começa no xamanismo, quando ele era uma mãe. Depois, Deus virou pai no Antigo Testamento. Em seguida, torna-se irmão, na pele de Jesus, que encarnou por nós. Agora, é a vez do Deus amigo, que conversa de igual para igual conosco. É hora de a gente parar de cobrar Deus."

Diretor do longa "Magal e os Formigas" (2016), Cannito fecha o raciocínio com uma frase provocadora: "Igreja é um lugar que você vai perdoar Deus. Por isso estamos criando um ambiente onde se possa pensar em Deus sem culpa, sem inferno. Aqui não existe um Deus punitivo."

Outro pilar da seita teatral é fazer atualização dos textos sagrados, ao propor uma Bíblia do humorismo, com paródias de trechos como o do Salmo 23.

VERSÃO DO SALMO 23

"O humor é o meu pastor, nada me irritará.

Faz-me gozar sem nenhum pranto, guia-me sabiamente a tudo ver com olhos tranquilos.

Graceja a minha alma; guia-me pelas veredas da piada, zombando de qualquer nome.

Ainda que eu andasse pelo vale da dor e da falta de sorte, não teria mal nenhum, porque tu, humor andas comigo; a tua graça e a tua leveza me renovam.

Preparas um cortejo perante mim na presença dos meus limites, unge minha cabeça com graça, a alegria me renova.

Certamente que a piada e a gargalhada transmutarão os problemas da minha vida; e habitarei na paz do humor por longos dias."

A leitura acaba com um "além" no lugar de amém.

DOWNLOAD BÍBLICO

"Deus está mandando a gente fazer um download e uma atualização da Bíblia", acredita o roteirista, que chamou para o grupo a missão de fazer esta releitura dos textos sagrados e parábolas bíblicas para o século 21.

A ideia é dessacralizar, mas sem desrespeitar as demais religiões.

"Não queremos questionar a fé dos outros. Nosso objetivo com a 'Deus é Humor' é reforçar nossa fé. Em quê? Em um Deus justo e misericordioso", diz Cannito. "Sei que às vezes o humor coloca a fé em dúvida e questiona dogmas. Por isso, temos por prática pedir desculpas, caso alguém se sinta ofendido ou tendo sua fé questionada."

Apesar da graça explícita, a coisa é séria. O espetáculo de 1h30 de duração tem espaço para discutir temas como carma, livre-arbítrio e justiça divina.

"Deus é Humor" busca ainda romper as dicotomias que hoje dividem o país e que paralisam o debate. Por isso, a campanha da fraternidade do movimento é "Adote um Fascista" e "Adote um Machista".

A cada semana, o espetáculo propõe uma programação diferente, com cantos e paródias espiritualizadas de clássicos do cancioneiro brega nacional, apresentados ao vivo pela banda Marcheiros. O grupo faz sucesso no YouTube com o hit "O Japonês da Federal".

E conta também com um grupo de "profetas tropicais", que embarcaram na onda. Entre eles, o ator, roteirista e comediante Márcio Américo, que brilha na internet na pele do Pastor Adélio.

"Todo mundo tem sua própria definição do que é Deus. O meu conceito é bem simples: Deus não existe. Sou ateu", diz o ator, que bate ponto no espetáculo na pessoa física e também com sua "entidade virtual".

Há ainda o profeta "drag queen" encarnado pelo músico Cristiano Meirelles, ex-seminarista, que começa sua performance lendo Padre Vieira e termina cantando "Free love".

A atriz Sandra Lessa, que trabalha com história de vidas no Museu da Pessoa, busca os testemunhos de fascistas e machistas que vão ser adotados pela seita.

O espetáculo de 17 de junho, foi dedicado à "cura hétero", uma paródia das sessões de "cura gay", em voga em templos neopentecostais. O ator Marcos Barreto personificou um certo parlamentar de farda e homofóbico que passa pelo ritual de conversão.

Tudo devidamente gravado. "Deus É Humor" já nasce multimídia. Depois de livro e da peça teatral, o processo de criação e o espetáculo em si vão dão dar origem a um documentário pelas mãos de Leo Brandt.

"Estamos rompendo a fronteira entre teatro e culto. A Deus É humor pode evoluir para um programa de auditório. Tem até nome provisório: Divino Cabaré", projeta Cannito.

Em 14 de julho 2014, ele teve uma iluminação, como relatou em um post no Facebook, quando decidiu abrir uma nova igreja. "A Deus é Humor só aceita pessoas que não estejam desesperadas. Se você está bem, não precisa nada de Deus, nem de milagre, mas acha super legal esse papo sobre Deus e o sentido da vida o lugar é aqui!"

RIR COM DEUS

Naquele momento, ele tinha claro de que seria uma igreja sem rebanho. "Todos serão pastores. Nosso objetivo é rir com Deus. Não é rir de Deus. Nosso objetivo é virar Deus."

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Ao escrever sobre o livro "Deus É Humor", o rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica do Brasil, destacou qualidades para que obra virasse uma série de tevê. "A genialidade da obra não está em revelar coisas que não fariam Deus rir, mas no fato de que decide rir junto com Ele".

Um riso compartilhado por profetas, palhaços, performers, crentes e descrentes. "Além".

"Deus é Humor" - Local: Teatro Commune, rua da Consolação 1218, São Paulo - Data: até 8/07 sempre aos sábados - Horário: 16 horas (no dia 8/07, excepcionalmente às 21h) - Classificação etária: 16 anos - Entrada gratuita, contribuição espontânea.


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