Folha de S. Paulo


De férias do noticiário em um mundo que se dissolve em sucessão de crises

Quando eu me preparava para sair de férias rumo ao Sudeste Asiático, sempre ouvia comentário do tipo: "Reza para não acontecer um terremoto, um tsunami, um atentado".

Afinal, estava de viagem marcada para a Indonésia, primeiro destino de um roteiro que incluiu Vietnã e Camboja. E jornalista, como se sabe, nunca está de férias e sempre pode ser acionado em caso de tragédias, desastres naturais e grandes acontecimentos.

Eis que em 7 de dezembro de 2016, quatro dias antes do meu embarque, um tremor de magnitude 6.5 graus na escolar Richter sacudia a ilha indonésia de Sumatra, deixando de imediato um rastro de 97 mortes.

Com este alerta vermelho, parti de São Paulo, em 11 de dezembro, para só retornar em 9 de janeiro. Foram exatos 30 dias distante do país, período no qual tentei também tirar férias do noticiário. Na medida do possível, claro, como jornalista que sou.

TSUNAMI EM PRESÍDIOS

Ao regressar, a sensação é de que um tsunami varreu o Brasil, a começar pelas mais de 130 mortes em presídios resultantes de guerras entre facções.

Uma contabilidade sangrenta e apavorante de uma grave crise há muito anunciada no nosso sistema prisional, com presos degolados por facções rivais no Amazonas, no Rio Grande do Norte e em Roraima.

Onda de violência que se soma a outras que sacodem periodicamente o país.

Na crônica de tragédias da virada de 2016 para 2017, houve ainda o massacre em Campinas, quando um pai matou o próprio filho, a ex-mulher e outras dez pessoas em uma noite de fúria planejada. As vítimas se reuniam para festejar a chegada do Ano Novo e se despediram dele logo em seu primeiro dia em vários cortejos fúnebres.

Enquanto as más notícias se avolumavam em um ritmo crescente deste lado do mundo, eu seguia uma viagem tranquila pela Indonésia, um país também açoitado por crises políticas, escândalos de corrupção e desastres naturais.

PAZ EM BALI

Um "espírito de porco" me lembrou na véspera do embarque: "Foi nessa época do ano que aconteceu um atentado terrorista em uma boate em Bali, não foi?", indagava o agourento de plantão, sobre o meu primeiro destino.

Não. Não foi em dezembro, mas em outubro de 2002 que um ataque de um grupo terrorista islâmico a uma boate em Kuta, uma das zonas mais turística da ilha, deixou um saldo de 202 mortos (164 estrangeiros) e 209 feridos.

Nada mais distante da minha temporada balinesa, longe de uma crônica de terror e próxima do idílico cenário do best-seller "Comer, Rezar e Amar", da escritora americana Elizabeth Gilbert, que fez suspirar românticos do mundo inteiro com seu "final feliz" em Ubud.

A encantadora cidadezinha no interior da ilha indonésia, cercada de floresta e de terraços de arroz, com seus lindos templos e hotéis e spas sofisticados, é um convite à meditação, ao relaxamento, enfim ao "dolce far niente".

CAOS SÓ NO TRÂNSITO

Uma tranquilidade que persistiu ao longo da viagem, ainda que em meio ao caos urbano das grandes cidades do Vietnã, como Ho Chi Minh e Hanói, símbolos da pujança de um país que vem crescendo 7% ao ano.

Encarava como mais uma aventura cada tentativa quase suicida de atravessar uma rua e vencer o mar de motos, principal meio de transporte urbano dos vietnamitas. Escapei ilesa e sem presenciar nenhum acidente de trânsito.

Mortos e feridos vi em abundância nos museus que lembram a Guerra do Vietnã (1955-1975), ali chamada de Guerra Americana.

Um mergulho na história de um país que quer deixar de ser lembrado como nome de um conflito para ganhar ganhar status de concorrido e surpreendente destino turístico, com belas baías, cidades históricas tombadas como Patrimônio da Humanidade e deliciosa gastronomia.

Enquanto isso, o Brasil, eterno país do futuro e paraíso tropical no imaginário gringo, mandava sinais de atraso, que assustam turistas e nacionais.

CRISE SANITÁRIA

O ano começava por aqui com o agravamento da crise sanitária, diante da emergência de febre amarela em Minas Gerais e o surgimento de uma misteriosa doença que deixa a urina preta e fez duas vítimas fatais na Bahia.

Males que vêm se somar às ameaças concretas do vírus Zika e da febre chikungunya, doenças transmitidas pelo mosquito Aedes Aegypti.

No meu maravilhoso mergulho em terras estrangeiras (com a vacina da febre amarela em dia, atestado exigido para quem vem de regiões endêmicas da doença como o Brasil), eu ia descobrindo novos sabores, culturas e lugares, enquanto tentava escapar da avalanche de manchetes negativas que teimavam em invadir minha timeline nas redes sociais.

Lia rapidamente as chamadas do noticiário político, que davam conta de novos escândalos no Governo Temer ou de novas operações na Lava Jato, como a que prendeu o pastor Silas Malafaia. E também passava os olhos nas imagens pirotécnicas de João Dória, vestido de lixeiro, ao assumir o papel de novo alcaide da cidade de São Paulo.

Mas, em período de detox, evitava ler reportagens e comentários. Fugi das polêmicas estéreis e das avaliações superficiais e quase sempre apressadas do mundo virtual. Bônus de quem está longe da cobertura diária do jornal e portanto não precisa estar 100% informada por dever de ofício.

DESPEDIDAS

Nas minhas incursões periódicas nas redes sociais para fazer algum post relativo à viagem, eu só me debruçava sobre fatos que me tocavam, entre eles uma sucessão de notícias fúnebres: a morte de Dom Paulo Evaristo Arns, em 13 de dezembro; do cantor George Michael, em 26 de dezembro; do escritor argentino Ricardo Piglia, em 6 de janeiro; do ex-presidente de Portugal Mario Soares, em 7 de janeiro.

A morte do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em 9 de janeiro, já me tragou em terras brasileiras, quando desembarcava debaixo de uma tempestade em Guarulhos, após uma viagem de mais de 27 horas.

A chuva e um acidente na marginal me jogaram em um engarrafamento gigante, que se formava desde as pistas de acesso ao aeroporto, fazendo o meu percurso de táxi até minha casa durar quase duas horas e meia.

Neste cenário meio apocalíptico de boas-vindas, eu li os primeiras obituários do teórico da "modernidade líquida", o polonês que tentou decifrar a crescente fluidez das relações sociais, políticas e econômicas nas sociedades contemporâneas.

De celular em punho e voltando pra casa, eu devorava artigos e postagens sobre o intelectual que transitou entre a sociologia, a filosofia e a psicologia para tentar explicar os males da nossa era.

Bauman nos fez pensar sobre os amores líquidos e uma vida sem referências sólidas e fragilmente ancorada no imenso "Big Brother" diário das redes sociais.

Foi com um sentimento de orfandade que recebi a notícia da morte do profeta da pós-modernidade, aos 91 anos, em meio a uma sucessão de perplexidades: a eleição de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, a ameaça constante do terror do Estado Islâmico, os desafios da globalização, os retrocessos em conquistas e direitos, além das crises estruturais provocadas pelo avanço da tecnologia que mina empregos mundo afora.

Acabava ali, de fato, minhas férias. Não dava mais para colocar no fundo da mala as angústias diante de tantas incertezas e tantos desafios nem fugir da sensação de impotência em tempos de "pós-verdade".

De volta à rotina, uma das minhas primeiras missões foi a cobertura do acidente de avião que vitimou o ministro Teori Zavascki, relator da Lava Jato no STF (Supremo Tribunal Federal).

Não dá mesmo para escapar à realidade quando ela se apresenta na forma concreta da morte, que interrompe a inexorável fluidez de nossas vidas líquidas.


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