Folha de S. Paulo


O casamento gay e a saúde pública

Um dos principais argumentos usados pelos opositores do casamento gay soa tão estúpido que é difícil de entender por que alguém perderia tempo em debatê-lo. Para os inimigos da causa LGBT, permitir a união civil entre pessoas do mesmo sexo provocaria uma banalização do matrimônio heterossexual e enfraqueceria os laços de famílias nesse padrão. Eu sei, é ridículo, mas a ciência deu um passo atrás e se debruçou sobre o assunto.

Imaginar que um homem e uma mulher deixariam de se casar aqui porque dois homens se casaram acolá é tão delirante que chega a ser penoso pensar em entrar numa discussão com alguém que raciocina assim. Mas no contexto da batalha jurídica da ação coletiva que culminou com liberação do casamento gay nos EUA na semana passada, seria de grande ajuda provar por A mais B que isso estava errado. Os defensores dessa ideia, afinal, poderiam se esconder atrás da falta de evidências.

Quem teve a paciência de elaborar uma pesquisa para testar o argumento de que a união homossexual afetaria o casamento hétero foram as sanitaristas Alexis Dinno e Chelsea Whitney, da Universidade Estadual de Portland, no Oregon. Taxas de casamentos são um tema comum em estudos de saúde pública porque pessoas casadas são em geral mais saudáveis do que aquelas que vivem sozinhas. O resultado de seu trabalho foi publicado em junho de 2013, exatamente um mês antes de o casal James Obergefell e John Arthur, de Ohio, entrar na justiça com o pedido de reconhecimento de seu casamento, no processo que daria origem à ação coletiva.

Para saber se a realização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo realmente provocaria uma redução no número de casamentos heterossexuais -ou um aumento no número de divórcios– as pesquisadoras foram atrás de registros matrimoniais nos 50 estados americanos e analisaram o que ocorreu durante vinte anos, no período entre 1989 e 2009.

Dinno e Whitney se valeram do fato de que alguns estados -Califórnia, Massachusetts, Connecticut, Vermont e Iowa– tinham aprovado leis permitindo o a união homossexual durante esse período. Seria possível, então, não apenas comparar estados pró e contra a causa gay mas também analisar como um mesmo estado reagia a duas legislações diferentes em momentos distintos.

A conta foi difícil de fazer, por requerer uma série de correções estatísticas para compensar lacunas em meio aos dados compilados, mas a conclusão não foi exatamente uma surpresa.

IMPACTO ECONÔMICO

"Descobrimos que taxas estaduais de casamentos de sexo oposto nos EUA entre 1989 e 2009 não se alteram significativamente quando leis de casamento e união entre pessoas do mesmo sexo estão em vigor, em comparação a quando não estão", afirmaram as pesquisadoras em um estudo na revista "PLoS One".

Mais do que constatar o óbvio, porém, as autoras do trabalho fizeram um favor ao debate sobre casamento gay ao reformular a questão como um problema de saúde pública. Pessoas impedidas de se casar por qualquer motivo que seja perdem benefícios de pensão, de cidadania, de planos de saúde, de apoio aos filhos e direitos de migração. Isso é extremamente problemático nos EUA, onde não existe sistema público de saúde, e convênios médicos impõem restrições de cobertura sempre que a lei os ampara. E quando uma população vai mal de saúde, isso afeta também a economia, diminuindo a capacidade de produção de um grupo social e provocando o desperdício de receita estatal e privada em males que poderiam ser prevenidos.

Negar direitos civis básicos à comunidade LGBT, portanto, não é apenas cruel do ponto vista humano -o que já seria motivo bom o suficiente liberar o casamento gay– mas é algo que afeta financeiramente o bolso de todo mundo. E esse todo mundo inclui os homofóbicos também. Não há estudo ainda avaliando o tamanho do impacto que isso tem, mas é uma conta que pode em princípio ser feita.

Dito tudo isso, é difícil saber se evidências concretas como a produzida pelas sanitaristas do Oregon são capazes de influenciar a justiça. A decisão da Suprema Corte dos EUA foi apertada (cinco votos contra quatro), e o texto da sentença dá a entender que os juízes operaram muito mais por convicções morais próprias e por uma análise jurídica e cultural do que pela busca de argumentos das "ciências duras". Isso não é um demérito em si, mas olhar para o caso do ponto de vista mais técnico poderia ter reforçado o ponto. Se o resultado de pesquisas como a de Dinno e Whitney chegar aos ouvidos de quem é contra o casamento gay, porém, talvez ao menos sirva para fazer com que os homofóbicos se sintam um pouco mais constrangidos a partir de agora.


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