Folha de S. Paulo


Um olhar para cada fato

Questões que envolvem gênero, raça ou classe são das que mais mobilizam os leitores. Estão no cerne da discussão moderna sobre como cada um constrói a sua identidade. Reverberam questões essenciais sobre quem somos, como somos e por que somos.

Alguns anos atrás, seria inimaginável que filósofa como a americana Judith Butler fosse alvo no Brasil de manifestações populares –contra e a favor! O eixo da polêmica sobre Butler está em aceitar que o gênero, por exemplo, está além do masculino e do feminino, sendo resultado de produção social.

O jornalismo é uma das ferramentas responsáveis por construção de identidades. Certas ações ou omissões são moldadoras de tal processo de produção social.

Na semana passada, a quase inexistente cobertura da Folha sobre manifestação contra proposta de emenda constitucional, que torna crime a interrupção voluntária de gravidez mesmo nos casos em que o aborto é hoje permitido (risco de vida para a mulher, consequência de estupro ou feto anencéfalo), suscitou reações firmes de leitores.

A onda de reclamações cresceu na sexta, 17, após o jornal dedicar espaço a uma página apócrifa, criada em redes sociais por apoiadoras –ditas feministas– de Jair Bolsonaro, pré-candidato a presidente com ideias de extrema-direita.

A Folha publicou em seu site apenas uma galeria de fotos de milhares de mulheres que protestaram país afora; na versão impressa, uma foto com uma legenda dupla no caderno "Cotidiano" mostrava duas mulheres com instrumento musical em meio à manifestação. E só. Entre 7.000 e 10.000 pessoas, segundo policiais e organizadores, estiveram na avenida Paulista.

Reprodução
Coluna Ombudsman
Destaque para protesto do MTST, ato contra a PEC 181 e foco sobre 'Feministas por Bolsonaro'

A leitora Marcia Fortes protestou: "É chocante e frustrante que um jornal deste porte tenha ignorado a bela e importante manifestação de mulheres contra a PEC 181. A segunda-feira testemunhou a força e a luta de milhares de mulheres brasileiras em defesa de causa extremamente relevante: a ameaça de retrocesso na lei do aborto".

O leitor Benjamin Seroussi apontou que, ao dar tanto espaço para a página de apoio a Bolsonaro –sem nem conferir fontes ou criar discussão critica a respeito–, "a Folha promove um discurso vazio, cujo único conteúdo é sua capacidade em provocar e, por isso, ser replicado".

O editor-executivo da Folha, Sérgio Dávila, admite que a Folha errou na cobertura da PEC 181. E avalia que a reportagem sobre as feministas pró-Bolsonaro faz parte do esforço do jornal em conhecer os eleitores daquele que está em segundo lugar nas pesquisas do Datafolha para a sucessão de 2018.

A ação de movimentos sociais organizados deve ser acompanhada de maneira crítica e não engajada. Muitos atos que a Folha têm minimizado estão ligados de alguma forma à elite artística e intelectual com vínculos históricos com o jornal.

A Redação, por vezes, escorrega na classificação preguiçosa de certas manifestações como "mais do mesmo". Abre mão assim de seu papel de selecionador e provocador na captura e análise do momento político, que dá fortes sinais de transformações de um lado e de outro.

É preciso ter um olhar criterioso para cada fato. Na semana que passou, a Folha optou pela mesmice.

"Gênero é uma lente sobre o mundo"

A jornalista Jessica Bennett assumiu o cargo de editora de Gênero do jornal norte-americano "The New York Times", uma pioneira na função. Autora premiada, publicou "Feminist Fight Club (HarperCollins, 2016)", espécie de manual de sobrevivência para as mulheres em locais de trabalho sexistas.

Por e-mail, ela disse estar animada para trabalhar com pessoas de todas as editorias do "NYT" para ajudar a criar e compartilhar reportagens a partir da ótica de gênero.

Qual o papel do jornalismo na moldagem e na reprodução das questões de gênero?

No "New York Times", acreditamos que a missão do jornalismo é ajudar as pessoas a entender o mundo. Gênero é uma lente que nos permite uma narrativa global.

Isso significa que abordaremos assuntos relacionados a mulheres e feminismo, mas também sexualidade, identidade de gênero, raça e classe, assim como política, esporte, negócio, ciência, família e saúde. Todos pela lente de gênero.

Que tipo de mudanças acredita serem necessárias e possíveis de fazer no "New York Times"?

Como a investigação pioneira de Jodi Kantor e Megan Twohey sobre o assédio sexual de Harvey Weinstein demonstrou, o "Times" já tem cobertura crítica desse importante tema. Temos repórteres por todo o mundo cobrindo essas questões –desde a envolvente narrativa de Ellen Barry sobre um assassinato em pequena cidade da Índia até o videodocumentário sobre as primeiras mulheres candidatas na Arábia Saudita. Grande parte do meu trabalho será pensar caminhos para amplificar coberturas já existentes.


Endereço da página: