Folha de S. Paulo


Lembrem-se de Ruanda: o genocídio ignorado dos yazidis

No livro Genocídio, a autora Samantha Power, atualmente embaixadora dos EUA para a ONU, relata como o governo americano resistiu a chamar de "genocídio" a carnificina dos Tutsis em Ruanda em 1994. Na época, uma comunicação do Departamento de Estado dizia que, se os EUA dissessem que estava ocorrendo um genocídio, isso "obrigaria o governo americano a efetivamente fazer alguma coisa".

Hoje, a apatia dos EUA diante da matança em Ruanda figura como um dos grandes erros na política externa no país.

E mesmo assim, estamos novamente diante de um equívoco semelhante.

Dentro do horror da guerra síria e da violência no Iraque, o massacre dos yazidis chama a atenção pela barbaridade. E pela relutância da ONU e das grandes potências em chamar o que está acontecendo pelo nome correto: genocídio.

Há cerca de 3,5 mil mulheres e crianças yazidi escravizados, usados como escravas sexuais, crianças-bomba e crianças-soldado.

Estive no Curdistão iraquiano em fevereiro de 2015, entrevistando algumas mulheres yazidi que conseguiram escapar do cativeiro ou saíram após pagamento de resgate. Eram histórias de mercados de venda de mulheres
e violências inimagináveis, com mulheres sodomizadas com objetos, espancadas, estupradas por vários homens ao mesmo tempo.

Em um informativo creditado ao "escritório de decretos religiosos", o EI informa que, se a capturada for virgem, o soldado "pode ter relação sexual com ela imediatamente após a captura; se ela não for, o útero dela precisa ser purificado antes" e "é permitido comprar, vender e dar de presente as capturadas, já que elas são apenas uma propriedade".

Os yazidis são considerados "adoradores do Diabo" pelos islamistas. Eles são curdos, mas não são muçulmanos como a maioria da população curda.
Sua religião mistura zoroastrismo, sufismo (ramo do islã) e cristianismo.

Segundo a Convenção para Prevenção e Repressão de Genocídio, de 1948, matar pessoas com a intenção de destruir, em parte ou totalmente, um grupo étnico, religioso, racial ou nacional, configura genocídio.

Não sei em que mundo o massacre dos yazidis não se enquadra nessa definição.

Ao raptar as mulheres e as crianças e matar os homens, frequentemente encontrados em valas comuns, o Estado Islâmico está exterminando o povo, a cultura e a religião dos yazidis.

Nem a derrota do EI em algumas regiões anteriormente habitadas pelos yazidi vai melhorar a situação do povo, que deve continuar amontoado em campos de refugiados no Iraque e na Turquia.
Sinjar foi liberada pelas forças peshmerga iraquianas e ajuda da coalizão em novembro. Mesmo assim, será muito difícil os yazidis voltarem para casa. Eles conviviam lado a lado com sunitas, parte dos quais apoiou o Estado Islâmico que escravizou e matou os yazidis.

Já há relatos de limpeza étnica nas áreas liberadas pelos curdos, com a expulsão de sunitas tidos como colaboradores do Estado Islâmico (também sunita). Mesmo sunitas que foram igualmente vítimas do EI são agora vistos como colaboradores.

A Convenção para o genocídio prega que os países precisam trabalhar juntos para "libertar a humanidade desse flagelo odioso".

Para começar, seria bom reconhecer que se trata, sim, de um genocídio, levar isso para o Conselho de Segurança da ONU e mostrar que esses bárbaros não sairão impunes.


Endereço da página: