Folha de S. Paulo


Leitores que ignoram as aspas

Diga lá, caro leitor: você sabe para que servem as aspas? E diga mais: você jura por todos os santos que as leva em conta quando lê um texto?

A julgar pelas mensagens que recebo e pelos comentários que se veem aqui e ali, boa parte do leitorado ignora sumariamente as aspas.

Comigo, isso é frequente quando transcrevo a definição de algum termo técnico. Se o caro leitor percebeu, eu disse "transcrevo", isto é, cito um trecho de um texto que não é de minha autoria. Transcrevo trechos de dicionários, canções etc.

E não é que volta e meia recebo mensagens de leitores que discordam da definição apresentada e se dirigem a mim como se fora eu o autor dela? E isso ocorre mesmo com a "lambuja" que dou (além de pôr as aspas, sempre informo a fonte).

Na semana passada, por exemplo, citei "acordão" e "acórdão". Um apresentador dum telejornal noturno disse "acordão" em vez de "acórdão" ao ler uma notícia em cujo contexto não fazia o menor sentido o termo "acordão". Transcrevi a definição do "Houaiss" de "acórdão". Profissionais do direito me escreveram para manifestar discordância da "minha" definição. Nenhum dos que escreveram percebeu que havia aspas e o nome da fonte.

Respondi a todos eles, mas apenas um continuou a conversa... Gentil, educado e, sobretudo, civilizado, um professor de direito confessou que não tinha notado as aspas. Os demais sumiram... O pior é que isso já aconteceu inúmeras vezes.

Aproveito para lembrar que, além do uso que já citei, as aspas podem "realçar certas palavras ou expressões" ("Houaiss"). Posto isso, peço ao caro leitor que note as aspas que empreguei em "minha" numa passagem anterior, que repito: "Profissionais do direito me escreveram para manifestar discordância da 'minha' definição". Por que pus "minha" entre aspas?

Já sabe? Por uma razão muito simples: porque a definição não é minha, uai! É do "Houaiss"! Como se vê, as aspas podem indicar que a palavra marcada por elas foi empregada com sentido oposto ao que tradicionalmente tem, o que quase sempre configura um caso de ironia.

Esse caso, o da ironia, hoje em dia é sumariamente ignorado por um mundão de gente, que, vivendo essencialmente na literalidade e dispondo de repertório limitadíssimo, não enxerga nem a pau um caso de ironia, por mais escancarada que seja. E aí sai pelas redes antissociais a dizer bobagem atrás de bobagem.

Voltando à não percepção das aspas nas citações, cabe dizer que também ocorre o contrário, isto é, o leitor atribui a alguém, já citado no texto, um pensamento expresso nesse texto que não é da pessoa já citada, mas do próprio autor do texto.

Certa vez, num artigo jornalístico, fui citado como emissor de uma frase que de fato eu dissera ao autor do artigo e que foi devidamente transcrita entre aspas. No fim do texto, o articulista expressou um pensamento dele. E não é que o site de uma associação de especialistas em estudos linguísticos atribuiu a mim esse pensamento e me surrou por eu pensar o que não penso?

Bem, se até "especialistas" enxergam aspas onde não as há (e talvez não as vejam quando as há), o que dizer de quem não é propriamente do ramo? A coisa tá feia, caro leitor. Muito feia. Um país que não sabe ler não pode mesmo dar muito certo. Não é por acaso que o brasileiro não consegue entender como funciona uma rotatória. É muito para a cabeça de muita gente. Se não somos capazes de entender signos verbais, imagine o que ocorre com signos não verbais... É isso.


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