Folha de S. Paulo


'Receitas que advenham...'

Dia desses, ao dar a enésima explicação sobre o que tenta pôr em prática para "acalmar os mercados" e dar à combalida economia do país o rumo desejado por Aécio, digo, por Dilma, o ministro Joaquim Levy disse algo como "O país precisa de receitas que advenham...".

Levy parece trafegar com tranquilidade no universo culto da linguagem, apesar de abusar de algumas repetições desagradáveis. Uma delas é o emprego de "você" como indeterminador ("Quando você perde o grau de investimento, você corre o risco de uma debandada dos capitais estrangeiros, aí você precisa tomar medidas mais drásticas do que você desejaria tomar").
Como se vê, às vezes essa indeterminação não é assim tão indeterminada...

O uso de "você" com esse valor é comum, documentado, explicado etc. (não só em português), mas, como tudo na vida, torna-se modorrento e enfastiante quando exagerado, e acaba por empobrecer o discurso, justamente pela monotonia na construção desse discurso. Mais comum na linguagem oral, esse "você" ainda não é frequente no texto escrito formal.

A conversa sobre esse emprego do pronome "você" tem outros importantes ingredientes, que decerto valem uma coluna inteira. Já pus na agenda dos assuntos futuros.

Mas voltemos ao que disse Levy sobre as tais receitas ("O país precisa de receitas que advenham..."). De que verbo é a forma "advenham"? Não parece difícil deduzir que se trata do verbo "advir", que vem do latim "advenire" ("ad" + "venire") e integra a família de "vir", que, também é bom lembrar, vem de "venire".

"Advir" significa "vir depois, surgir como efeito de, provir, resultar, ocorrer, suceder" e é conjugado como "vir", o que significa que, para conjugar "advir", basta conjugar "vir" e antepor a todas as formas o prefixo latino "ad-", o mesmo que aparece em inúmeras palavras da nossa língua (adjetivo, adjunto, admirar, advento, administrar, advogado etc.). Assim, se de "vir" temos "veio", de "advir" teremos "adveio" ("A crise adveio de sucessivos e grotescos erros..."); se de "vir" temos "vierem", de "advir" teremos "advierem" ("Se dessa crise advierem desemprego e recessão..."); se de "vir" temos "venham", de "advir" teremos "advenham" ("O país precisa de receitas que advenham...").

É interessante lembrar algumas particularidades que marcam a família do verbo "vir". Se levarmos em conta a etimologia, ou seja, a origem, poremos no mesmo barco verbos como "vir", "intervir", "provir", "desavir", "convir" e "prevenir", mas...

O caro leitor certamente notou que "prevenir" parece um estranho no ninho, não? Dos verbos arrolados, é o único que não termina em "vir", embora venha, sim, da mesma família ("prevenir" vem de "praevenire").

Se levarmos em conta a conjugação, aí sim "prevenir" parecerá de vez um estranho no ninho, já que as suas flexões nada têm que ver com as de "vir" (previno, previne, prevenimos, previnem, preveni, preveniu, preveniram, previna, previnamos, previnam, prevenisse, prevenido).

Com os demais membros da família de "vir", todo o cuidado é pouco na hora da conjugação, já que é muito comum a flexão desses verbos como se fossem regulares. Não são. No registro culto, nada de "Eu intervi na briga", "O diretor interviu", "Se o governo intervisse", "Se o ministro intervir", "Comprei porque o preço conviu" etc. No padrão culto, as frases citadas se transformam em "Eu intervim na briga", "O diretor interveio", "Se o governo interviesse", "Se o ministro intervier", "... porque o preço conveio". É isso.

inculta@uol.com.br


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