Folha de S. Paulo


'É isso que indiguina a sociedade'

A discussão sobre a redução da maioridade penal ferve Brasil afora. No meio do tiroteio entre defensores das duas posições antagônicas, surge um ou outro ataque à norma-padrão da língua. Na semana passada, na TV, durante uma entrevista, um deputado federal favorável à redução da maioridade concluiu seu raciocínio desta maneira: "É isso que indiguina a sociedade".

Pois bem, caro leitor. Escrevi "indiguina", com "gui", para tentar traduzir graficamente a maneira como o nobre parlamentar pronunciou a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo "indignar", que não se escreve com "ui" depois do "g", o que também ocorre com o verbo "dignar" e com os adjetivos "digno" e "digna".

Quem leu exatamente o que está escrito pronunciou "indiguina" com força no terceiro "i" ("indiGUIna"), exatamente como fez o deputado.

O fato é que não é essa a pronúncia (muito menos a grafia) que se verifica na norma-padrão da língua. Como já vimos, não há "gui" em "dignar" e "indignar", como também não há em "estagnar", "impregnar", "consignar", "designar", "resignar", "persignar" etc.

Por falar em "persignar", nunca é demais lembrar ao menos um trecho do memorável poema "Não se Mate", do sempre imprescindível Carlos Drummond de Andrade:

"O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe,
de quê, praquê".

É fácil encontrar esse poema na internet, caro leitor. Leia-o todo, reflita sobre ele e note a sua contundente atualidade. Vale cada sílaba.

O que é "persignar-se", que aparece no verso "santos que se persignam"? Vamos lá: "Fazer com o polegar três sinais da cruz, na testa, na boca e no peito" ("Aulete").

Se me permite, caro leitor, vou perguntar-lhe como você leu "santos que se persignam". Não imitou o nobilíssimo deputado, certo? A tonicidade está no "i" da sílaba "sig".

Para os que gostam de saber a origem do desvio (na pronúncia e talvez na grafia), a explicação mais cabível talvez seja esta: a pronúncia mais comum do infinitivo dos verbos que terminam em "gnar" é mesmo a que se assemelha a algo como "diguinar", "estaguinar", "impreguinar" etc., ou seja, quase todos os brasileiros lemos o infinitivo desses verbos como se houvesse um "i" antes do "n" que inicia a última sílaba ("nar"). Daí para a pronúncia de determinadas flexões desses verbos como se de fato houvesse uma sílaba "gui" é um pulo.

Tudo isso explica ou talvez explique a origem do desvio e/ou da pronúncia inadequada à norma-padrão da língua, mas não é suficiente para torná-lo (o desvio) "legítimo".

Posto isso, caro leitor, vamos ler, de acordo com a norma, as flexões verbais presentes nas frases a seguir: "A podridão na política estagna a economia", "Esse cheiro se impregna na roupa", "Por que você não consigna o seu carro a uma loja especializada?", "Dilma quase sempre designa gente obscura para o seu ministério", "Ele não se resigna com a perda da casa".

E então, caro leitor? Pôs força na vogal que antecede o "g" em todas as emissões? Se me permite, vou destacar a vogal tônica de cada flexão: "estAgna", "imprEgna", "consIgna", "desIgna", "resIgna". É isso.

inculta@uol.com.br


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