Folha de S. Paulo


'...desviava dinheiro havia dez anos'

Estava na capa do UOL ontem: "Vaccari desviava dinheiro para o PT havia dez anos, dizem procuradores". O caro leitor notou a forma verbal "havia"? Por que foi empregada? Ou no lugar dela deveria ter sido empregada a forma "há"?

Vamos por partes. Fora de contexto, as formas "há" e "havia" podem ser empregadas num caso como o do título citado, mas... Mas isso não dá a ninguém o direito de dizer que "tanto faz". Não é caso de "tanto faz"; é caso de "depende".

Quando se diz, por exemplo, que a informática no Brasil engatinhava há 30 anos ou que há 30 anos a informática no Brasil engatinhava, diz-se que 30 anos atrás a informática engatinhava no Brasil e não que fazia 30 anos que ela engatinhava.

Se no lugar de "há" se usasse "havia", isto é, se se dissesse que a informática por aqui engatinhava havia 30 anos ou que havia 30 anos que a informática engatinhava, dir-se-ia que fazia 30 anos que a informática engatinhava no Brasil.

No título citado, expressa-se a ideia de que fazia (havia) dez anos que Vaccari desviava dinheiro para o PT e não que dez anos atrás ele desviava dinheiro para o PT. Como o caro leitor notou, há uma enorme diferença entre as construções.

Na linguagem do dia a dia, é pouco comum o emprego desse "havia" em construções como as que vimos. A forma "há" é usada quase como uma partícula universal de tempo. De fato, são muito comuns construções como "Quando ela nasceu, eles eram casados há dez anos". Nesses casos, o padrão culto registraria o emprego de "havia", equivalente a "fazia": "Quando ela nasceu, eles eram casados havia dez anos".

Se você é dos que gostam de algo que funcione como tira-teima, sugiro-lhe que troque "haver" por "fazer". Suponho que nos dois casos a forma "fazia" não deixaria ninguém com os cabelos em pé: "Quando ela nasceu, eles eram casados fazia dez anos" ("Quando ela nasceu, fazia dez anos que eles..."); "Eu trabalhava lá fazia dez anos quando ela foi contratada" ("Fazia dez anos que eu trabalhava lá quando ela...").

Cá entre nós, pode-se dizer que nem mesmo a forma "há" tem sido empregada; volta e meia se vê um indefeso "a", coitadinho, tascado ali sem dó nem piedade.

O caro leitor certamente notou que a substituição de "haver" por "fazer" não implica mudança no número (singular/plural) da flexão verbal, já que, no padrão culto, tanto "haver" quanto "fazer" são impessoais quando indicam ideia de intervalo entre dois fatos: "Faz dez anos que não vou lá" (e não "fazem dez anos"); "Fazia alguns meses que eu esperava por uma mensagem dela" (e não "faziam alguns meses").

Essa particularidade na flexão de número de "haver" e "fazer" não se aplica em qualquer caso. De tanto que se martela a informação de que "o verbo 'haver' não sai do singular quando é empregado com o sentido de...", muita gente para (que vontade de escrever "pára"!) em "singular", ou seja, não registra o que se diz depois de "singular", isto é, põe na cabeça que o verbo "haver" não sai do singular e ponto.

Não é assim. "Haver" e "fazer" têm plural, sim, desde que não sejam empregados para marcar a ideia de intervalo entre dois fatos e, no caso de "haver", com o sentido de "ocorrer/acontecer" e "existir".

Moral da história: "Eles haverão de limpar a área", "Os gêmeos fazem dez anos hoje", "Os advogados dos presos não houveram o habeas corpus" ("houveram" aí equivale a "obtiveram", "conseguiram" _esse uso de "haver" se restringe às modalidades formais da língua). É isso.

inculta@uol.com.br


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