Folha de S. Paulo


Como curar, com dor e desgosto, uma panela de ferro fundido

Chamava-se Mark Maron. Comprou a primeira panela de ferro fundido na Califórnia, quando foi fazer o mestrado, numa daquelas "garage sale" espalhadas pela rua. Era uma frigideira pesada e, mal a pegou, já sentiu na nuca o olhar da mocinha que vendia. Loura, bonita, de cabelo bem curto, jeans, um piercing no nariz, e voz decidida: "Pode levar se me prometer que jamais a lavará com água e sabão. Era da minha avó, está muito bem curada."

Ele ainda quis fugir da compra, perguntou se não era melhor guardar para não se arrepender, mas ela respondeu decidida que estava na hora, estava na hora e pronto.

Levou para casa se sentindo um pioneiro, a menina ensinara que o processo de cura era só passar uma gordura e colocar a panela no fogo ou no forno. Fazer isso três vezes, ficava uma película dura por fora e a comida não pegava, não grudava no fundo. Negócio feito, guardião dos rituais americanos.

Preferiu comprar banha, queria fazer em casa, coisa de barriga de porco, toucinho, depois coava. Enfiou no forno as três vezes mandadas, se arrependeu um pouco por causa da fumaceira na cozinha mínima, mas quando acabou sentiu que a panela era mais dele do que antes.

Leonardo Wen/Folhapress

Andou com ela por dois casamentos, duas mudanças, um livro escrito e mal-sucedido e um livro bom que vendeu muito. Era assim, cada vez que sofria uma dor, um desgosto, curava a panela e os dois saiam melhor da tristeza. Mais limpos, mais fortes.

Um dia, sem desgosto algum, foi ao Google. Achava que a frigideira estava precisando de uma boa limpeza, viu métodos incríveis, mas se decidiu pelo de uma senhora química que mandava limpar muito bem, com coragem, e com um líquido desses comuns de tirar gordura. Foi o que ele fez até a panela ficar nua e crua, depois a afundou imediatamente em água, e vinagre com bicarbonato para não haver a menor possibilidade de enferrujar. Passou a linhaça com pincel e levou ao forno.

A senhora química avisara que poderia lavar, sim, contanto que secasse bem depois. Mas não deu certo a tal cura. Passavam-se os dias, foi ficando com um ódio do tal do Google e da senhora. Mentirosa, não se mexia assim com as tradições de um povo, de uma velhinha morta, de uma moça de jeans e barriga de fora.

Não teve jeito mesmo: tudo grudava e ainda saíam pedaços de pele do fundo. Enfim, uma panela doente. Resolveu que não ia curar de novo. Por uns tempos. Esperaria o susto, a paixão, o desaforo, o que fosse. Viria, com certeza, e então ele curaria a panela devagarinho, com os cuidados que se devia ter com uma amiga.

Suspirou, guardou na prateleira mais alta, sentindo-se um pouco menor na sua estatura de pioneiro e esperou o dia chegar. Dia de cura. Dele e da panela. De onde sairiam limpos, fortes, refrescados, com a alma cantando como depois de um banho de cachoeira no veranico.


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