Folha de S. Paulo


Moça bonita do meu coração

Quem gosta muito de comida e escreve sobre ela acaba enjoando de tanta receita e começa a filosofar sobre o leite derramado.

Por que os homens, que nunca cozinharam, agora testam seus talentos nos fins de semana? Só aos fins de semana? O que distingue a comida dos homens e das mulheres? A simbologia das facas. A mídia e os "masterchefs". Percebem? No tempo em que gastei pesquisando poderia estar aperfeiçoando uma receita de bacalhau, experimentando o sal, marcando em números o tempo de cozimento, o tamanho da panela. Não acho que cozinhar, na prática, seja uma atividade menor do que ler livros sobre a psicanálise do salmão selvagem.

A prática de cozinhar é mais gostosa do que a-prática-de-ler-sobre-cozinha. Cozinhar é divertido, desafiador, não dá aquela sensação de Emilia de Monteiro Lobato, o olho fixo, parado, pensando.

Depois das reflexões, dos livros complicados, chega a hora de cozinhar porque é almoço. É jantar. E então você se vira para a estante de livros e pensa: o que vou fazer? Cozinheira tem brancos, como os escritores. Na hora H, falha o raciocínio, quanto mais raciocínio que saiu da filosofia, da sociologia, da antropologia. E que livro vamos pegar? Aquele que te ensina, te dá mão, não te obriga a telefonar para o peixeiro, nem ir ao supermercado gourmet procurar uma linguiça espanhola que talvez já tenha acabado nas prateleiras, nem entender de sementes achadas nas tumbas dos faraós.

E o que é que a família gosta de comer? Ostras recheadas? Patê de foie com Sauternes? Não, o máximo da novidade é um rosbife com batatas ao forno, uma mandioca frita, um franguinho ensopado com polenta, bife, bife, bem feito, nada de ficar batendo bife até matar, ovo frito com a cara de cada um. Ovos mexidos. Se estiver muito aventureira no máximo comida árabe, ou carne moída disfarçada de mexicana, dentro de um pãozinho, posta no forno na hora.

Rabanadas? Tem coisa melhor que rabanada?

E que livro vai ser útil nessa hora? A explicação da comida através dos tempos, o homem se levantando das quatro patas, a mulher acendendo o fogo, o nascimento do garfo, o modo preciso de afiar uma faca, a biografia de Carême, de Escoffier? As pegadinhas de Ferran Adrià, vamos fazer espuma, leite quadrado, coelho líquido, formiga doce?

Não, na hora da fome, não. Queremos um suflezinho de chuchu, até o bife batidinho serve, batata frita nem se fale, peito de frango ou asinha, pastel... As pegadas do carbono? Comida local? Global? Não, agora é hora do jantar, vamos comer.

Não sei porque as pessoas são tão novidadeiras nos restaurantes. Se gostamos de lombo com farofa, de arroz branco soltinho, um caldo de feijão com pimenta, uma sardinha com cebola, um macarrão com molho de tomate e lasanha, lasanha...

Sobremesa? Comem de tudo que tenha chocolate e um chantilly bem batido, sorvete nem se comenta, e aquelas coisas de mãe, como arroz-doce, banana frita...

As tendências? Deixa pra lá e me dá a comidinha de sempre, e para ter ideias, para não errar na quantidade, pegue o livro novo da Rita Lobo, "Cozinha Prática", e que dá sempre certo, e que gostamos de comer, e que nos faz sentar à mesa com pouca curiosidade e muito apetite.

Primeiro, uma geladeira brasileira, com certeza. Depois alguém que te ensine a cozinhar. Não receitas soltas, mas um conversar contínuo, um deixar à vontade, estou fazendo assim porque é o que dá certo para mim, mas você pode experimentar de outro jeito.

Ah, Rita, que prazer te ver bonita como sempre, nossa Martha Stewart melhorada, os detalhes da cozinha explicados, as modas simplificadas, a graça atrás da profissional dedicada, o humor, o poder da dedicação ao trabalho que faz, gente que leva comida e prazer a sério, ah, Rita, me dá o pão nosso de cada dia, me desgourmetiza, me joga de boca no fogão, me ensina a enfeitar o prato bonito em dois segundos, a misturar os ingredientes sem falar em nouvelle nada, dar risada, compartilhar, pouca louça bonita pra lavar, um cafezinho depois? Não, nem precisa, tava tudo tão gostoso, mãe, posso pegar mais um doce desses com cara de brigadeiro? Pode, filho, e aproveita que está em pé e põe num copo o resto de suco de lima-da-pérsia e me dá para não amargar.

Só me falta um torresmo, Rita, me dá um torresmo no próximo livro, me dá, moça bonita do meu coração.


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