Folha de S. Paulo


Lindo de morrer

Há um tempão contei a vocês que era a rica possuidora de um fogão Viking. Passei pela loja na rua Gabriel Monteiro da Silva e entrei. Como eram bonitos, fortes, profissionais, completos, coloridos! Grandes demais para minha cozinha. De repente, de um canto escondido um deles me chamou a atenção. Era diferente dos outros, tinha só quatro bocas, lindo de morrer.

Fui até a doce menina atendente e perguntei o preço. Ora, o preço. Era baratinho, com certeza, informou ela, e daquele tamanho só aquele. Nunca mais acharia outro naquelas medidas.

Sabe as caras que costumamos fazer quando a quantia foge totalmente do nosso bolso? Cara de que de repente foi chamada para atender um telefonema importante, cara de amanhã-eu-volto-com-certeza. Enfim, a doce menina deve ter percebido que aquilo foi um choque.

Apareceu o dono, simpaticíssimo e contei meu breve namoro com o fogãozinho poderoso e branco. Com aquele dinheiro poderia comprar um grande barco de madeira para velejar em Paraty, pagar a faculdade de alguém, e filosofamos sobre a vida que torna as coisas tão caras para uns e tão baratas para outros.

Pois não é que passou-se um tempo e ele me ligou. O tal fogãozinho estava me perseguindo.

Tinha sido emprestado a um concurso de culinária por uma semana e não mais poderia ser vendido pela loja como novo. Mas, se eu quisesse.... Em muitas prestações e pela metade do preço... Era tentador.

Um dia o pequeno Viking chegou à minha casa. As proporções dele haviam aumentado longe da loja. Passei vergonha. Quase foi preciso jogar a casa no chão, pois as portas antigas tem um centímetro menos do que as novas. Os vizinhos deram palpite, telefonemas foram feitos de cá para lá e de lá para cá, e o único jeito era desmontar o bichinho para que conseguisse entrar em sua cozinha nova.

Que orgulho! Fazia um pouco de tudo e tinha um defeito de fábrica de somenos. Estalava de quando em quando, como a reclamar da comida simples que o ocupava diariamente. O forno era um pouco grande para uma família muito pequena e as panelas tinham fundo pequeno para bocas tão grandes, coisa que não reparei na loja.

Vivemos juntos numa alegria só, formada de pratos triviais e de vez em quando alguma novidade para dias de festas. Ele, sempre igual. Não era como aqueles fogões que tem a porta do forno torta de modo que só você pode fechá-la, e que uma das bocas não acende se não for empurrada com um certo jeitinho. Tudo mudava ao seu redor, mas o Viking, não, passava o rio, passava o tempo e ele firme.

Gostava tanto dele que tinha vontade de passear aos domingos em volta do quarteirão como se ele fosse meu fiel cachorro. Era o meu sonho realizado. Um fogão profissional, inquebrável e lindo.

Não há bem que sempre dure. O forno de repente se fez triste. Começou a não cumprir sua missão. Já não aquecia as tortas, deixava a lasanha crua. Veio alguém consertar imediatamente. Era coisa simples, umas baterias, coisa de somenos, mas as pecinhas teriam que vir de fora, e isso e mais aquilo. E o preço do conserto? O preço era de uns quatro bons fogões nacionais.

E foi aí que começou a saga da cozinheira sem fogão. O que fazer? Jogar fora meu cachorrão de estimação e comprar um novo, nacional? Mas, que saudade, que pena.

Convidar os outros para jantar, nem pensar. O forno não esquentava nem um pãozinho francês. E o bolo para a visita do lanche? Tem que ser comprado na esquina mais próxima. E os pãezinhos de queijo da família mineira? E o amigo que quer comer uma certa comida ao qual estava acostumado?

Nada mais acontece na casa. Acabou-se o que era doce. As atividades culinárias foram murchando por causa da dúvida atroz. Não se experimentam mais receitas. Seria o caso de se colocar o antigo servidor numa casa de velhos enfermos? Substituído por um reles e mequetrefe cachorrinho vira-lata?

Cada dia é inventada uma desculpa. Não se recebem mais hóspedes, não se fazem mais jantares. Acabou-se a hospitalidade risonha. De vez em quando corre um arrepio pela casa, estará o fogãozinho sendo usado como desculpa esfarrapada? Os novos amigos são recebidos em restaurantes próximos e tão acostumados ficaram com a falta do fogo amigo que muitas vezes trazem a comida já pronta, o vinho, e não se comenta mais o assunto.

Numa segunda-feira os velhos amigos trouxeram de surpresa a padeira nova, Beth Bakery, com dezenas de pães maravilhosos, isto é, não se vai mais à padaria, ela vem a você. O sociólogo veio abraçado à ostras sobre gelo, presente da bela Bella, do Amadeus, os limões já cortados por cima. Como espremer limões sem forno, pensou ela. Trouxe junto sua butarga deliciosa para ser cortada em fatias finíssimas. O casal de amigos novos amontoa latas preciosas lá das terras do fogão quebrado, salmões, pequenas ovas saborosas, o champanhe, o vinho.

A dona da casa já ganhou o apelido vergonhoso de "cozinheira sem fogão" e leu nas provas da contra-capa de seu novo livro que "cozinha com a caneta". Se quiser manter o fogo da hospitalidade há que se comprar um novo fogão e fazer a honrosa despedida do velho Viking, com lágrimas nos olhos.

Uma dúvida atroz ronda sua cabeça. Não está vivendo melhor e mais descansada na cozinha sem fogão? Pois não é verdade que o nosso Santos Dumont não tinha cozinha em casa? E olhe que o homem sabia das coisas. Não é necessário que existam nesse mundo cozinheiras de caneta? Dúvidas. Vamos ver o que se vai fazer, qual a providência a tomar. Afinal não se pode mudar o rumo da vida por causa de um fogão quebrado, mesmo que seja um másculo e corajoso Viking.


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