Folha de S. Paulo


Adolescência é a hora de abrir a cabeça, diz novo autor de 'Malhação'

Cercado de notinhas de papel com nomes de personagens, o cineasta Cao Hamburger, 55, estava ansioso em seu escritório na Vila Madalena, a poucos dias da estreia da nova temporada de "Malhação", escrita por ele. Ela entrou no ar na segunda.

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"Tenho um pouco de medo. Nunca tive um projeto tão grande. É todo mundo meio técnico de futebol, né? Todos vão opinar", diz, com uma voz mansa e um jeito introvertido, à repórter Letícia Mori.

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Ele assume o roteiro da novela voltada para adolescentes em um momento em que a TV aberta tem perdido cada vez mais o público jovem para canais pagos e outras plataformas. Cao diz que "não tem a menor esperança" de trazê-los de volta para a televisão. "A gente tem que ir encontrar o jovem onde ele está. Hoje eles veem no celular, no computador. Estamos trabalhando as multitelas e a presença nas redes sociais."

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Conhecido por seus produtos infantis de sucesso, como "Castelo-Rá-Tim-Bum" (Cultura), Cao também não é estranho ao universo adolescente, mas precisou se adaptar à revolução tecnológica. "Já tenho três grupos no Whatsapp", diz, orgulhoso. Também criou, auxiliado pelo filho Tom, 26, uma página no Facebook. "Logo depois ele me bloqueou porque eu ficava perguntando o que eram as coisas que ele escrevia", conta, rindo.

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"Houve uma evolução das tecnologias, mas, no fundo, alma do adolescente é a mesma", diz Cao, que "foi a campo" participando de mais de dez encontros com grupos de adolescentes de escolas particulares e públicas. "O que chamou a atenção não foram as diferenças, mas as semelhanças. O Brasil é uma sociedade muito desigual e separada, ricos e pobres convivem muito pouco. Mas na realidade não somos tão diferentes."

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"A diferença é social e cultural, mas as questões internas, a alma dos jovens, são muito parecidas. É aquela pessoa que ainda não é respeitado como adulto, mas também já não é criança, já não enche mais a casa de alegria, como dizem os Titãs. Que está tentando encontrar seu lugar."

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Novato no mundo dos folhetins, ele disse que não tinha a menor condição de fazer novela quando a Globo sugeriu que assumisse "Malhação". "Foram vários encontros até o Silvio de Abreu [diretor do departamento de dramaturgia] me convencer", afirma.

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Acredita que o episódio da última temporada acusado nas redes sociais de ser machista e gordofóbico provavelmente foi um descuido. Um personagem dizia para a namorada ficar "bem gorda" para outros homens não darem em cima dela.

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"É uma coisa chata [esse tipo de coisa ir ao ar]. Pode ter sido um descuido, algo que passou. É tanto texto, você tem que escrever tão rápido... Espero que não aconteça comigo. A gente está tomando o maior cuidado para não acontecer isso, justamente porque a gente tem uma história para falar da valorização das boas diferenças."

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Foi ele quem propôs a diversidade como tema dessa temporada. A Globo gostou. A emissora tem tido uma política de tentar falar com um público mais amplo e aumentar as "cenas sociais" -contabilizou 1.280 delas em 2016, com temas como educação, sustentabilidade e direitos humanos. "A adolescência é um momento bom para falar sobre isso. Teoricamente os preconceitos não estão tão sedimentados", diz Cao.

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O cineasta sorri relembrando sua própria juventude e descreve que sentia como se tivesse "um machado abrindo sua cabeça". "Não sei porque penso isso. É meio violento, né?", filosofa, antes de contar histórias da sua época.

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"Quando estava no colégio Equipe (em SP), em plena ditadura militar, fui ver um show com o [Gilberto] Gil. Estava lotado, tinha gente até nos telhados vizinhos tentando ver. Um PM veio tirar as pessoas do telhado e foi uma vaia absurda: 'abaixo à ditadura, abaixo à ditadura'. O Gil, parou, pediu silêncio e falou: 'Calma gente, ele tá só fazendo o trabalho dele, as pessoas estão em perigo, pode acontecer um acidente'."

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"Foi uma machadada! Eu pensei: 'Nossa, é mesmo, eu não tinha pensado nisso, tava aqui com raiva do cara...' E [abrir a cabeça] é muito importante num momento político, no Brasil e no mundo, em que as pessoas veem tudo em preto e branco. Existem nuances"

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Diz que pretende atingir os pais também, já que "ser pai de adolescente é uma fase difícil". "Meu filho e minha filha foram ótimos, mas você sente que eles têm a necessidade de se afastar. E você precisa entender isso."

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Além de diferenças sociais e culturais e dos dramas românticos de sempre, a novela também vai falar de assuntos que surgem nas redes sociais, como depressão entre jovens. Mas não vai tratar diretamente de suicídio, como a série "13 Reasons Why", da Netflix, que levantou o debate sobre o problema.

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"Suicídio é difícil de tratar, você corre muitos riscos: ou glamouriza, ou estigmatiza. Não é impossível, mas tem que ser feito com um cuidado que talvez na novela eu não tenha tempo. Precisa refletir sobre, pensar, reescrever."

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Com um roteiro que mistura pobre e ricos, brancos e negros e com uma das atrizes principais fugindo do padrão "magreza", Cao diz que está preparado para reações negativas de um público conservador -como aconteceu com a série "Os Dias Eram Assim", que foi atacada por apoiadores da ditadura.

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E rejeita, um tantinho ofendido, a afirmação que suas séries infantis são unanimidade. "Faço trabalhos polêmicos também",diz. Além dos programas para crianças, ele dirigiu filmes como "O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias" -que foi a indicação do Brasil para Oscar em 2006, desbancando "Tropa de Elite"- e "Xingu", sobre os índios e os irmãos Villas-Bôas.

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"A 'Malhação' vai ter umas provocações legais", diz o autor. Divaga por um minuto e depois pondera: "Mas claro, sem brigar. Tem que provocar para conversar, não pra ofender. Para ter uma conversa de alto nível."


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