Folha de S. Paulo


Era intercâmbio de cadáveres, diz guerrilheiro das Farc a Fernando Morais

O que mais chamou a atenção do escritor Fernando Morais, 70, no acampamento das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) não foram as armas, a falta de energia elétrica ou as marcas de bala dos guerrilheiros. Foi o fato de que só havia jovens entre as 600 pessoas.

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"Ninguém sobrevive, eles morrem antes de envelhecer", diz o brasileiro, já de volta a São Paulo, à repórter Letícia Mori. Ele foi o único jornalista e escritor autorizado a acompanhar de dentro de um acampamento a fase final de desmobilização da guerrilha marxista criada em 1964. Depois de 53 anos, o fim da guerra entre o grupo e o governo da Colômbia foi acertado em um acordo de paz no ano passado.

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Morais foi acompanhado pelo produtor Fernando Dias e pelo diretor Maurício Dias, da Grifa Filmes. A visita rendeu um filme a ser exibido na TV paga. Com livros adaptados para o cinema, como "Olga" e "Chatô", Morais diz que está encerrando a carreira de escritor e migrando para o audiovisual. A partir de agora, fará documentários.

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O acampamento das Farc visitado pelos brasileiros ficava a 12 horas de carro de Bogotá, embrenhado no meio da floresta e impossível de ser visto de cima. "Aí é o problema de ter 70 anos. Eles tomavam banho no rio, mas eu não me arrisquei. Segui o conselho da minha mulher e levei lencinhos umedecidos", diz.

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O jornalista conta que já havia tido duas experiências parecidas —com os sandinistas na Nicarágua e com a Fatah no Líbano—, mas nenhuma tão desconfortável. "Eu tô muito gordo, fumo muito, não faço atividade física, sou hipertenso e esqueci de levar meu medidor de pressão", diz, rindo e fumando um charuto.

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Na semana que passou na floresta, Morais vislumbrou o cotidiano dos jovens que passaram a vida em guerra. "Eles não têm transtorno de estresse pós-traumático, como soldados americanos que voltam da guerra. Porque as batalhas não são uma interrupção no cotidiano pacífico deles. A vida deles é a guerra, não conhecem outra coisa."

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Mulheres e homens tomam banho juntos no rio. Todos os homens com o mesmo tipo de cueca, todas as mulheres com calcinhas e sutiãs padronizados, relata Morais. A guerrilha, diz, é formada quase meio a meio por homens e mulheres —e elas pegam em armas, lutam, carregam peso. Só não podem engravidar. Os dois únicos bebês no local, segundo ele, nasceram após o início do processo de paz.

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Morais também lembra as condições espartanas: além de não haver eletricidade nem água encanada, a alimentação é modesta. Mas há muitas armas, diz ele. "O almoço era um caldo de batatas e um ovo, e eles comiam com um fuzil AK-47 em cima da mesa." O grupo tinha também rifles AR-15 e AR-16, metralhadoras e lançadores de granada, segundo Morais.

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Pelo acordo de paz, as armas estão sendo entregues aos poucos. A ONU diz já ter registrado 85% do armamento. "Eles têm medo de entregar tudo de uma vez e serem massacrados. E nem é medo do exército colombiano, mas das organizações paramilitares de extrema-direita."

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O álcool, normalmente proibido nos acampamentos, foi permitido na véspera da saída da floresta. "Eles assaram um boi e um cabrito e fizeram uma apresentação, começaram a dançar. Acho que o processo de paz é um monumental alívio para todo mundo", avalia Morais.

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"Um rapaz de uma família de nove irmãos, em que todos foram para a guerrilha, deu a melhor descrição da guerra nos últimos anos. Ele me disse: 'isso aqui virou um intercâmbio de cadáveres. Eles vêm e matam dez, a gente vai e mata 20. Quando ia parar?'." Uma comissão do governo colombiano estima que cerca de 220 mil pessoas morreram ao longo do conflito; a maioria (82%) civis.

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No acampamento, Morais entrevistou o comandante Carlos Losada, que há 38 anos mora na selva. Ele já havia conversado com o líder da força revolucionária, Timoleón Jiménez, o Timochenko, em Havana (Cuba). "Não fizeram restrição, foi jornalismo. Pude perguntar de tudo. Inclusive perguntei sobre as ligações das Farc com narcotráfico", diz o jornalista. A produção e o tráfico de drogas, sobretudo da cocaína, eram a base de renda do grupo.

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Dos 20 guerrilheiros entrevistados para o documentário, só dois ou três haviam entrado no movimento com mais de 16 anos. "A maioria entrou porque os pais ou a família foram mortos por paramilitares", diz o diretor Maurício Dias. "Há um enorme alívio, mas também certa ansiedade deles em relação ao futuro de cada um", completa Morais.

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"Todos eles têm pelo menos um tiro", conta, ao mostrar a foto de uma das duas guerrilheiras que foram designadas para ajudar a equipe de documentaristas. As duas sonham em ser jornalistas e queriam aprender a mexer nas câmeras. Outros querem virar dançarinos e atores.

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Pelo acordo de paz, os guerrilheiros devem ganhar espaço na vida civil —eles tiveram aulas no acampamento nos meses antes da desmobilização e ganharam mil bolsas para a universidade. Dos campos, os guerrilheiros foram em carros da ONU para alojamentos provisórios, onde ficarão em processo de adaptação por alguns meses.

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"Parte já tem uma formação de base informal. Eles têm aula de filosofia, pedagogia. Têm 'médicos' e, apesar da precariedade, todos têm os dentes perfeitos", diz Maurício, mostrando mais fotos.

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No último dia, em que ocorria a festa de despedida, Morais sentiu dor nas costas e pediu para um médico dos guerrilheiros ajudá-lo. "Fiquei impressionado com o profissionalismo. Ele me disse que tinha bebido e por isso não podia me atender. Avisou que viria no dia seguinte."

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O escritor exibe cenas gravadas com uma guerrilheira que ficou três dias com a perna pendurada ao corpo após um ferimento e recebeu atendimento. De batom, unhas feitas, brincos e colares, ela levanta a calça e mostra a cicatriz enorme.

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"Eu tinha andado com ela por lá, mas não vi a cicatriz. Ela também não manca. Se você cruzasse com ela no shopping jamais imaginaria que essa menina ficou a vida toda na guerra. Nunca pisou num centro urbano, nunca sentou numa privada. Eles não sabem o que é dinheiro. Vai ser um choque quando forem para a cidade."


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