Folha de S. Paulo


Após mal-entendido com Doria, Kobra diz que 'não compartilha de atitude repressiva'

Enquanto assistentes demarcam o muro de um imóvel nos Jardins, o artista Eduardo Kobra, 41, decide qual desenho pintar na parede. Mal ele pega uma lata de tinta, se aproxima uma moradora do bairro e pede uma selfie. "Minha filha pirou quando disse que ele tá pintando aqui", explica Fernanda Joanitti. "Não quer um café, não?", pergunta ela a Kobra e à repórter Letícia Mori, que acompanha o dia de trabalho do artista.

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A recepção calorosa é bem diferente do tratamento que ele costumava receber. De quando começou a fazer arte de rua, aos 12, grafitando muros no bairro do Campo Limpo, em SP, onde cresceu, até ficar conhecido internacionalmente, Kobra chegou a ser preso mais de dez vezes. Algumas quando o trabalho nem era ilegal. "Uma vez eu tava retocando uma pintura minha e a polícia chegou. Só acreditaram na delegacia."

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Depois de fazer fama com dezenas de murais coloridos espalhados por cidades como São Paulo, Londres, Berlim e Paris, seu nome virou uma referência tão conhecida que ele acaba sendo tietado nos Jardins e citado pelo prefeito como coordenador de um programa municipal sobre o qual nem estava sabendo.

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Há alguns dias, o prefeito João Doria disse que ele seria coordenador de um braço do programa Cidade Linda para combater a pichação e criar algum controle da arte urbana. Após Kobra negar veementemente que ocuparia cargo público, o tucano voltou atrás e afirmou que o artista seria uma espécie de "curador".

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"Nem sabia o que era o projeto", diz Kobra, que tinha participado de uma reunião de meia hora com Doria na qual deu sugestões de como incentivar a arte urbana na cidade. "Começou e terminou nesse ponto. Sugeri criar um museu de 'street art', falei do festival de arte 3D que estou organizando no Memorial da América Latina."

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"Acho que ele se entusiasmou. Até liguei para ele depois para explicar que não posso ser coordenador nem fazer curadoria nenhuma", diz Kobra, que repete várias vezes durante a conversa que "não trabalha para a prefeitura", "não poderia assumir um cargo nesse sentido" e "não faz parte de um projeto".

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"Claro que, se a prefeitura quiser me consultar sobre qualquer coisa que beneficie a arte urbana, estou à disposição. Mas jamais aceitaria um cargo. Principalmente contra pichadores. Não compartilho de atitude repressiva e jamais me colocaria numa posição contrária a outro artista."

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Para Kobra, a rua não tem curadoria. "Grafite é uma arte que é livre, ela continua sendo livre, não dá pra controlar. Está no DNA da cidade de SP, que é conhecida por ter a maior diversidade de estilos na arte urbana. Já tem turistas que vêm para cá só para conhecer a arte de rua."

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O tempo todo Kobra reforça o orgulho que tem da sua história. E pede para ser chamado de muralista, não grafiteiro. "Grafite, por definição, é arte livre, sem permissão. O que eu faço não é grafite, porque é autorizado", afirma. "Mas nunca deixei colocarem restrições ao meu trabalho. Quando a pessoa autoriza, tem que dar liberdade."

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Não que ele tenha que pedir muita licença hoje em dia –a maioria de suas intervenções é a convite. São tantas nos EUA que ele vai montar uma base de trabalho em New Jersey e levar a família para morar com ele por lá. Assim pode passar mais tempo com a mulher e o filho, Pedro, de sete meses. Intercalando temporadas no Brasil, vai fazer uma série de 28 murais espalhados por Nova York.

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"A cidade tem a ver com minha história. Comecei a pintar por influência dos grafiteiros de lá, na década de 1980, o [Jean-Michel] Basquiat, o Keith Haring." Aos 18 anos ele foi morar sozinho após atritos com a família, que se opunha ao grafite. "Pintava lojas, trocava por roupa. Nunca tive problema com droga, mas andava só com os 'maloqueiro'. Eles [a família] queriam me proteger." Chegou a trabalhar em banco, depois saiu.

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Um resquício ficou de seu tempo pintando ilegalmente e sem proteção: ele sofre de plumbose, contaminação pelo chumbo das tintas. "Aprendi a conviver, mas tem dia que não consigo trabalhar por causa da dor de cabeça."

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A mudança veio nos anos 2000, quando seus murais de paisagens históricas de São Paulo começaram a chamar atenção. Hoje vende telas por até 40 mil euros e serigrafias por US$ 3.000. Diz que, apesar de ter uma equipe de cinco pessoas, pinta ele próprio todos os trabalhos, faz apenas um original de cada mural em tela e descarta fazer licenciamento de produtos –o que já gerou críticas a artistas como Romero Britto, por tornar o trabalho mais comercial.

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"Acho assim: ele [Romero] me parece feliz com o caminho que escolheu, né?", diz, sem ironia. "Respeito a história dele, mas não tomaria os mesmos caminhos. Tanto é que eu estou há 28 anos pintando e raramente me associo com alguma marca."

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"Porém não pode levar para um lado muito radical, de ser hipócrita de imaginar que um artista consegue pagar as contas sem vender. Já vi muita gente na rua falar uma coisa e não conseguir sustentar quando a empresa 'x' bate na porta. Então prefiro cuidar da minha vida", encerra, antes de mirar seu spray de tinta amarela no muro nos Jardins.


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