Folha de S. Paulo


São Paulo não tem solução, diz o arquiteto Paulo Mendes da Rocha

"Você fica muito tempo parado e as pessoas começam a te dar prêmios", diz o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, 88. Sentado em seu escritório no centro de São Paulo, ele reage com modéstia à menção da repórter Letícia Mori aos importantes troféus que recebeu neste ano: o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, na Itália, e o Prêmio Imperial do Japão.

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Somados ao Mies van der Rohe que levou em 2000 e ao Pritzker (o Nobel da arquitetura) com o qual foi agraciado em 2006, os troféus tornam Mendes da Rocha o arquiteto brasileiro vivo mais premiado.

No entanto ele prefere bater papo a ser entrevistado sobre seus 62 anos de carreira. Tomando Coca-Cola com a arquiteta Catherine Otondo, dá dicas de viagem. "Tem obras de arte, mas a graça de Veneza é a cidade. Deixa rolar. Só não caia na lorota das comidas, porque tem muita coisa podre. O que você pode comer é o tramezzino, um sanduichinho, uma delícia", aconselha.

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Catherine está ali para falar sobre o livro que está organizando, com desenhos, fotos e histórias da Casa Butantã, imóvel modernista projetado pelo arquiteto em 1964 e que fica perto da Cidade Universitária. Ali ele morou com a família por cerca de 20 anos.

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"Eu era muito jovem, recém-formado. Quer dizer, até hoje não estou formado", conta o arquiteto de projetos como o Museu da Língua Portuguesa, o MuBE (Museu Brasileiro da Escultura) e o ginásio do Clube Athletico Paulistano. "Fiquei fazendo aquela casa como um ensaio pra mim mesmo, como um discurso muito curioso sobre o ideal da casa, que ia muito além da história de quarto, sala, cozinha e banheiro. Ela tem um sentido de experimentação."

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"O que nós fizemos tem um sentido literário. É um discurso sobre habitar que considera a habitação social, que tem um rigor no desenho para que pudéssemos pensar em pré-fabricação", diz ele sobre sua sua geração, a chamada Escola Paulista, liderada por João Batista Vilanova Artigas.

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Volta para as recordações pessoais. "Meus filhos eram muito pequenos. De vez em quando eu os levava na construção. Virou um grande divertimento", relembra. "Nunca se trancou a porta, os filhos dos vizinhos viviam lá. Não é, Catherine?", pergunta ele. A arquiteta foi uma das vizinhas que brincavam lá quando pequena. "Não tem nenhum tipo de portão, então a gente aproveitava a liberdade, escorregava no morro, tomava banho de chuva nas piscininhas de concreto", conta ela.

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O arquiteto continua: "Eu tomava café de manhã antes de ir trabalhar. Quando chegava na mesa as crianças já estavam lá. A casa já fazia parte do bairro, de porta aberta. Qualquer coisa como as casas das favelas, onde não têm esses muros dos bairros ricos."

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Apesar do tom nostálgico, ele diz que não sente falta do espaço. Mudou-se para Higienópolis nos anos 1990, para ficar mais perto da faculdade da filha caçula, e mora lá até hoje com a mulher. "Não sinto falta de nada! Quem faz a casa não é a construção, são as pessoas. A sua casa é sempre onde você está."

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O imóvel do Butantã ficou um tempo vazio e depois abrigou um grupo de alunos de Mendes da Rocha na Faculdade de Arquitetura da USP. "Hoje meu filho Lito mora lá, com a família dele. Antes eu era o dono, e ele o filho. Veja: já não é a mesma casa."

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As imagens do local feitas por Lito estão na edição do livro, que será lançado na quarta (14). Há poucas publicações sobre os projetos de residências feitos pelo arquiteto, por uma convicção: a de que casa não é um modelo a ser reproduzido na cidade.

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"Veja essa casa [do Butantã]: era um ensaio atrapalhado, porque uma casa isolada num terreno já não era, quando foi feita, a casa da cidade contemporânea. A residência contemporânea tem que ser um prédio, que permite o adensamento desejado, para o transporte público funcionar etc. etc."

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Ele é contrário à existência de casarões ocupando quarteirões inteiros em áreas cheias de infraestrutura, como nos Jardins. Mas diz que adensar a região como foi feito em outros bairros, sem planejamento, seria um erro. "Não dá pra transformar uma vila antiga em uma cidade contemporânea construindo um prédio em cima de cada casinha. Teria que redesenhar o chão, começar do começo."

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Também é crítico do projeto para que ruas da região sejam exclusivamente residenciais. "Onde já se viu, áreas exclusivamente residenciais! É de uma estupidez...", diz, demonstrando cansaço ao comentar o mesmo assunto por anos a fio.

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"A opinião do arquiteto não é a de um sábio extraordinário. O que eu penso sobre a cidade é o que todo mundo pensa: é um senso comum de urbanismo. É o que vem se dizendo há muito anos." Comenta brevemente questões como a valorização do centro e o Plano Diretor aprovado na gestão de Fernando Haddad (PT). "De tempos em tempos aparece um novo Plano Diretor, mas a questão é se vão cumprir ou não. E isso é política, não arquitetura", diz.

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Critica propostas, como as do prefeito João Doria (PSDB), de privatização de parques e equipamentos públicos. "Em arquitetura, você pode não saber exatamente o que fazer, mas sabe o que não fazer: é o exagero da especulação, é vender o território do planeta, é vender a cidade."

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Diz que os arquitetos nunca foram tão infelizes quanto hoje em dia. "A cidade nunca foi tão contrária àquilo que se possa imaginar como uma cidade, eu não diria ideal, mas melhor do que a que está aí", afirma. "Espanta a capacidade dessa classe ignorante, no entanto capaz do ponto de vista financeiro, de aceitar qualquer besteira", diz, se referindo à "mentalidade pequeno-burguesia" de parte dos moradores da cidade.

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Cita o que considera bons exemplos da metrópole, como o Copan, de Oscar Niemeyer, e o Conjunto Nacional, de David Libeskind, ambos de uso misto e com térreos abertos. Mas afirma que São Paulo, como um todo, "não tem solução". "Para começar nunca poderia ter chegado a 20 milhões de pessoas [na região metropolitana]. E hoje, fazendo uma divagação, mesmo que ficassem só 3 milhões, o que iríamos fazer com os prédios vazios? Não dá pra derrubar, não tem onde pôr o entulho. Só de latrinas você teria milhões", afirma.

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"É o caso do Minhocão. Por que querem plantar cenoura aí no elevado? Porque não tem como tirar. Como vai demolir esse monstro? Como vai levar todo esse entulho embora?", questiona. "O que podemos fazer é melhorar", concede.

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"Afinal, a cidade, mesmo malfeita, é o espaço mais livre que você pode imaginar. Se você quiser, seja por indigência total ou por aborrecimento porque tomou um pileque, pode dormir no chão onde bem entender", diz antes de ir descansar no modelo original da poltrona Paulistano, projetada por ele em 1957.


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