Folha de S. Paulo


'Todos eles sofrem preconceito', diz Maria Casadevall, que faz peça com haitianos

"Boa noite, Maria! Essa menina continua linda!", grita um morador de rua que passa em frente a uma doceria na rua Maria Antonia, região central de São Paulo. "Tudo bom, Roger?", responde a atriz Maria Casadevall, 29, antes de tomar um gole de seu café.

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"Isso aqui é um corredor entre dois mundos", explica a artista à repórter Letícia Mori. "De um lado é o bairro mais rico e arborizado da cidade, do outro é o centro. É onde tudo se cruza: as dondocas, os intelectuais, o pessoal do teatro, universitários", diz ela, que nasceu e cresceu em Higienópolis, bairro nobre da capital. Hoje mora sozinha em um apartamento na região.

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De uma família de classe média, Maria começou a conhecer na adolescência, logo depois da sair da escola, o movimento dos teatros da praça Roosevelt. Foi com o grupo experimental Os Satyros que iniciou a carreira de atriz, antes de ser descoberta pela Globo.

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Seu primeiro trabalho no Projac (o centro de produção da emissora, no Rio) foi um papel secundário na série "Lara com Z" (2011). "Foi muito legal não ter visibilidade no começo, ficar lá entendendo como funciona. Para quem tá na praça Roosevelt há quatro anos, o Projac é um dragão de sete cabeças. Depois, quando fiz algo maior, ainda era um dragão, mas talvez de três cabeças. Eu já tinha cortado umas quatro", diz, rindo.

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Depois do sucesso de público com a novela "Amor à Vida" (2014), em que fez par romântico com o ator Caio Castro, com quem namorou, ela recusou contrato de três anos com a emissora. "A vida é sempre um equilíbrio entre liberdade e segurança. Naquele momento preferi poder escolher projetos em vez de apenas receber os papéis", conta a atriz. "Também fico livre de ter compromissos como ir a programas de auditório quando não estou numa novela."

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A liberdade também permite que ela não se afaste do trabalho na companhia de teatro. Após comprar pedaços de bolo para Jorge, outro morador de rua, ela vai para o ensaio de seu próximo trabalho –a peça "Haiti Somos Nós", com 12 imigrantes haitianos e um palestino no elenco.

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Ela chega, cumprimenta um por um e começa um papo animado com o pessoal da produção. A atriz Letícia Sabatella, que também vai participar do espetáculo, pede silêncio. "Estamos ensaiando, vocês podem admirar", diz, meio sério, meio brincando.

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A peça surgiu como continuação do projeto social da Prefeitura de SP para os imigrantes. Os Satyros foram convidados para pensar em como integrar culturalmente os recém-chegados. Suas histórias foram dramatizadas para as apresentações, entre 5 e 7/8.

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"Tínhamos uma profunda preocupação em não ser algo do tipo 'somos brasileiros, estamos tão bem, vamos falar deles, tadinhos'. Nossa diferença está exposta. Mas as raízes são parecidas. Tenho descoberto muito sobre mim, sobre a história do meu país, do meu continente", diz Maria.

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"O Haiti é um país que paga até hoje pelo seu ato de coragem, por ser o primeiro que conquistou a independência através de uma revolução de escravos, e sofreu muitos embargos por isso. E se a gente não tá como eles é porque em algum momento foi um pouco mais covarde."

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Entre os haitianos, há pessoas de diferentes classes sociais, idades e profissões. Nenhum deles atuava. A exilada política e militante feminista Rilienne Rilchard saiu do país em 2004, perdeu a mãe no terremoto em 2010 e só conseguiu se reencontrar com os dois filhos no Brasil. Com doutorado em história, Jean Denis Cameau veio para cá depois da tragédia e hoje trabalha como faxineiro. Ele conta sua trajetória na peça. "Vim sem dinheiro, sem falar português e só não fui morar na rua porque encontrei um conhecido que me abrigou", diz.

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"Todos falam sobre o preconceito que sofrem por serem imigrantes e negros. A gente vê os efeitos desse movimento conservador, dessa repressão que vem aumentando", conta Maria. "Mas com esse projeto a gente enxerga também que a integração pacífica é muito melhor que o ódio excludente."

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"As pessoas no Brasil não sabem que vocês não querem a Minustah no Haiti, vocês têm que dizer pra eles!", grita para o elenco o diretor, Rodolfo García Vásquez. Todos os imigrantes são contra a missão militar da ONU encabeçada pelo Brasil na região. Na peça colocam relatos de estupro e violência perpetrados pela força de paz.

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A exceção, que se diz neutra, é Carolina Pierre Louis. Ela sofreu um tipo de escravidão infantil quando era pequena e deixou três filhos no Haiti. "Fiquei tentando entender por que ela é a única entre todos que não tem tanto engajamento. Percebi que a questão dela é tanto a sobrevivência que não tem tempo para pensar nisso", conta Maria.

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Para a paulistana, participar do projeto faz parte de um processo pessoal de tomada de consciência política. "Tem sido importantíssimo para mim entrar em contato com esse processo de luta. Cresci numa casa muito apolitizada, nunca se falou de política. Fui buscando conhecimento de maneira intuitiva. Aos poucos você vai começando a construir a sua ideologia, se encaixando em alguns lugares", diz ela.

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A atriz se posicionou contra o impeachment de Dilma Rousseff e diz que não terá problema em revelar em quem vai votar neste ano, quando se decidir. Mas afirma que a questão partidária é a última etapa da politização. "Primeiro é sua visão de mundo, todas as nossas atitudes em relação aos outros e em relação ao meio. Todos os nossos atos são políticos", afirma, antes de ensaiar sua última cena.


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