Folha de S. Paulo


'Não queremos Bolsonaro', diz cantora trans que estreia talk show

"Brunaaaaa, maravilhosa, diva!", dizem quase em uníssono os integrantes do programa "Estação Plural" ao avistarem a atriz Bruna Lombardi no estúdio da TV Brasil onde a esperam para começar a gravação. Ela é a quarta entrevistada da recém-iniciada atração sobre o universo LGBT, que traz como apresentadores a cantora lésbica Ellen Oléria, vencedora do primeiro "The Voice Brasil", a vocalista transexual Candy Mel e o jornalista Fernando Oliveira, o Fefito, que é gay.

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Com perfis diferentes, os três têm um objetivo claro para o programa: ajudar a desmitificar o jeito como gays, lésbicas, trans e bissexuais são vistos pela sociedade.

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"Eu gosto de naturalizar a vivência LGBT", diz Candy Mel. "É disso que a gente precisa, mais do que nunca. Não podemos partir do princípio da exotização: não precisamos falar como vivem, como se alimentam, de onde vêm. Somos pessoas normais", afirma, contando com a anuência dos colegas.

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De voz mansa e meiga, Mel, como gosta de ser chamada, começou sua transição na adolescência, em Goiânia. Não se lembra ao certo se aos 14, 15 ou 16 anos, mas, diferentemente de outras pessoas transexuais, teve o apoio da avó e da mãe, que a criaram.

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"Teve um momento de estranhamento no começo, um silêncio. Mas minha transição foi rodeada de muito amor e carinho dos meus amigos, que me ajudaram muito. Eles me protegeram e me deram respaldo. Não foi tão doloroso como poderia ter sido e é com muitas pessoas", diz à repórter Marcela Paes.

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Há cinco anos em São Paulo, desde que ingressou na Banda Uó, de música brega, a cantora fez sua primeira campanha publicitária no ano passado, quando foi chamada por uma empresa internacional de cosméticos e maquiagem."Acho maravilhoso ter participado. Sinto orgulho, mas não adianta eu achar que está tudo bem com a situação dos transexuais porque consegui certa aceitação. Existem pessoas apanhando na rua neste momento por isso. Não dá pra esquecer e relaxar."

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Mel não esquece o dia em que estava num bar com o namorado e estranhou quando o segurança da porta pediu o RG dela. "Ele ficou olhando, olhando... Devolveu sem falar nada. Quando eu fui ao banheiro, ele foi até a mesa 'avisar' ao meu namorado que eu era um homem. Não deu pra acreditar. A gente tem que se posicionar contra isso."

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Ellen enfrentou algo mais sério ao ser atacada por um homem com um isqueiro enquanto andava com a mulher pela rua Augusta. "A gente nem tava de mão dada nem nada. Ele tentou queimar meu cabelo. Eu nem pensei muito: bati nele! Tem violências que são tão absurdas. Ele mereceu e eu dei o que ele pediu!"

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A cantora também conta uma história de bar. "Tinha um moço meio assustado. Disse que entrou no bar em frente ao que nós estávamos, que foi assediado por homens e não sabia que era um bar gay. Aí eu: 'e esse bar aqui?'. Ele perguntou: 'esse bar é gay?'. Minha resposta foi: 'Olha, deve ser. Eu tô vendo umas sapatonas aqui, então deve ser um bar lésbico'", conta ela, rindo.

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Fefito faz piada. "Seja menos lésbica pro moço poder usar o bar, pô! [risos] Que nem me disseram na TV uma vez: 'Seja menos gay'."

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Ellen costumava levar a mulher, Poliana Martins, às gravações do programa "The Voice" (Globo). A cantora insistiu para que a produção identificasse corretamente a namorada, que aparecia como "amiga" quando a torcida dela era mencionada.

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"Eu perguntei se havia alguma restrição, numa boa, quase por curiosidade. E as meninas da produção falavam: 'Ah, mas você fica à vontade com isso?'. E eu: 'Claro, pois fui eu que coloquei na minha ficha' [risos]."

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"O Tiago Leifert [apresentador do programa] veio falar comigo, eu estava no palco e não sabia que tinha rolado, e ele veio dizer que deu certo a legenda 'namorada'. Pra nós, isso é motivo de comemoração. A invisibilidade é um dos braços mais poderosos da violência", afirma Ellen, que é formada em artes cênicas pela UnB e se considera uma militante das causas racial e LGBT.

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O programa começa e o papo com Bruna Lombardi está animado. Ela parece se interessar pela história de Mel e, quando se prepara para fazer um elogio à cantora, a luz do estúdio acaba.

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"É a energia da conversa!", diz Fefito. O jornalista, que também é colunista do jornal "Agora", trabalhou no programa da apresentadora Cátia Fonseca, o "Mulheres" (Gazeta), e nunca escondeu sua sexualidade dos telespectadores -que, na atração vespertina, são principalmente "senhorinhas e donas de casa", segundo ele. "Elas me adotaram, me veem como o neto delas. Já fui abraçado na balada por jovenzinhos que me disseram: 'Minha mãe começou a me aceitar por sua causa'."

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"A experiência de ser um gay assumido na TV pode ser um pouco traumática. A gente vive num país onde os galãs vivem no armário por muito tempo. E a gente sabe, mas nunca é assumido."

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No "Estação Plural", a liberdade para falar das próprias experiências é grande. Para o trio, isso acontece em parte pela curiosidade de convidados pouco familiarizados com a temática LGBT.

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A dançarina Rita Cadillac, o médico Drauzio Varella e a jornalista Barbara Gancia já passaram pela atração. "O Drauzio mesmo, que tem muito conhecimento sobre o tema, ficou surpreso com coisas que a Mel falou", diz Fefito. "Acho que ele aprendeu coisas, e isso é muito legal."

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"Mas foi tudo muito amigável, né, Fefito?", diz Mel. "Eu acho complicado colocar uma pessoa que vem pra cá mas é contra todos nós que estamos aqui. Acho que não precisamos disso. Eu não tô preparada pra um [Jair] Bolsonaro [risos]!" Convidados com perfil conservador, como o deputado federal, estão definitivamente fora da lista.

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"A gente não tem por que visibilizar quem nos invisibiliza. Mas, se a pessoa tem ideias diferentes e quer conversar, é diferente. Por que não?", diz Ellen.


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