Folha de S. Paulo


'Espero que meus filhos não percebam meu medo', diz Thiago Lacerda sobre violência

Com chinelo no pé e um chimarrão na mão, Thiago Lacerda toma um gole de mate antes de pegar um táxi. Ele está de saída do hotel, no Itaim Bibi, para o teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, para mais uma sessão de "Macbeth", peça de Shakespeare em que o ator interpreta o protagonista.

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Nascido no Rio, ele diz que o hábito do chimarrão começou muito antes de papéis em que teve contato com a cultura gaúcha, como na minissérie "A Casa das Sete Mulheres" (Globo), de 2003. "Tomo há 18 anos. É um ritual bacana, uma tradição de boas-vindas, generosidade, respeito. Tem um sábio que mora no mate, eu e ele ficamos conversando. Dou entrevista melhor 'mateando'", diz à repórter Letícia Mori.

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As pausas para o mate durante toda a conversa combinam com o momento introspectivo do ator, que aos 37 anos interpreta seu segundo protagonista em remontagens de Shakespeare, depois de Hamlet, em 2012. Além de "Macbeth", ele também está em cartaz com "Medida por Medida", do mesmo autor.

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"O Ron [Daniels, diretor das peças] e eu achamos que [ter duas montagens em cartaz] seria uma ideia louca, corajosa, e eu gosto muito disso: de improbabilidades, coisas que não são óbvias."

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Para entrar no clima, se conhecer melhor e estabelecer laços, Thiago convidou o elenco todo (que é o mesmo nos dois espetáculos) para uma espécie de retiro em sua chácara, no interior do Rio de Janeiro, onde tem nove cachorros e duas vacas.

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O grupo, que reúne atores como Giulia Gam e Marco Antônio Pâmio, passou uma semana convivendo e estudando o texto. "Minha casa é um lugar muito privilegiado pela natureza, por uma energia revigorante. O silêncio é importante pra gente se ouvir. E é impressionante como a gente leva isso pra cena: essa confiança, essa intimidade."

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Afinal, interpretar Shakespeare "nunca é fácil", diz. "Esse papel é pesado, é um homem que abre mão de todas as estruturas éticas e morais em nome da ambição, demanda muito da gente."

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Sem estudo formal de artes cênicas, com uma "formação prática, 80% intuitiva", Thiago sentiu necessidade de atuar nos palcos após estourar na novela "Terra Nostra" (Globo), de 1999. "Até então eu era só um jovem começando uma carreira incerta. Não foi só muita exposição, mas um redirecionamento da vida: a partir dali não tinha mais plano B", diz ele, que levou a faculdade de economia até a metade da novela.

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"Fui fazer teatro porque descobri que precisava aprender o meu ofício. Comecei a carreira na televisão, tenho orgulho, acho que a minha história é essa. Mas em algum momento precisei buscar recursos que eu não tinha."

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Acabou se convencendo de que ator precisa fazer de tudo. "Dublar, fazer musical, televisão, cinema, subir no banco da praça e recitar um poema. Mas o teatro é a caixa de ferramenta, é o espaço onde você arrisca, se provoca."

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Entre sua primeira peça, em 2001, e os elogios da crítica por sua atuação em "Macbeth", o ator foi acumulando convicções. "O teatro tem que ser para todo mundo, sem segmentação, sem complicação. Tenho sorte de conseguir escolher projetos que chegam nas pessoas: de casa cheia, com todo mundo entendendo o que a gente faz."

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E reflete sobre a atualidade de Shakespeare, que, segundo Thiago, não escrevia para as pessoas ficarem felizes ou tristes, mas para provocar. "O meu engajamento é mostrar para as pessoas: tá aí, olha o que acontece quando você perde a medida das coisas. A ética e a moral existem pra que a gente não se suje de sangue [como acontece com Macbeth]."

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A forma de manter a chama acesa é "perseverar" na arte, gesto que ele vê como um posicionamento político. "Tudo conspira para que a gente não faça o que faz: o baixo investimento na cultura, a burocracia, a dificuldade das leis de incentivo, a maneira perversa como a cultura está entregue na mão de poucas empresas. A cultura e a educação no Brasil são negligenciadas há séculos! Não é culpa só do PT, do PSDB, é a história da gente."

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Emitir opinião não é um problema para ele, mas às vezes prefere ficar calado. "Tenho dúvidas se é positivo, porque nossa opinião é muito indutiva. Se as pessoas não entendem o que você fala, elas vão atrás do que você faz. Não quero apoiar o governo porque o Chico Buarque apoia nem ser contra porque o empresário que admiro é contra."

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O envolvimento em temas políticos o levou a um mal-entendido com o ator Paulo Betti, que comentou no Facebook um encontro de artistas para discutir a sucessão presidencial em 2014.

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"Reunião de apoio a Aécio [Neves] na casa de Luciano Huck e Angélica. Presentes Marcelo Adnet, Kaká, Andrucha Waddington, Fernanda Torres. Sem comentários (risos)", escreveu Betti em sua página na ocasião.

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Thiago, que não participou da reunião, questionou em seu perfil o tom da postagem. "Por que é piada algumas pessoas se reunirem com outras?", pergunta, calmamente, ao relembrar o episódio. "Por que ironizar, por que não fazer um comentário respeitoso?"

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"Falei isso e o Paulo imediatamente entendeu. E o que aconteceu foi maravilhoso. Eu amo o Paulo, respeito profundamente as convicções dele, apesar de não concordar com algumas. Só que as pessoas acabaram transformando isso em algo maior."

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Casado com a atriz Vanessa Lóes, 44, há 14 anos e pai de três filhos pequenos, Thiago conta que as crianças mudaram sua relação com o mundo. "A gente vive em função delas. Quando me perguntam se tenho Twitter, respondo: 'Não, eu tenho filhos!'"

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E diz que, por causa da família, suas duas maiores preocupações hoje são educação e segurança. "Tenho a sorte e o privilégio de poder oferecer uma escola bilíngue para meus filhos, mas mesmo nesse sistema, de elite, consigo perceber a dificuldade de ser humano, de perceber o indivíduo."
E reflete, tomando mais um pouco do chimarrão: "Uma civilização que constrói presídios, fecha escolas, agride professores e alunos, vai por um caminho muito ruim".

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Assustado com a violência no Rio de Janeiro, ele diz que raramente consegue relaxar estando longe de sua família. "Cara, é um fantasma, um terror. Eu tô aqui em São Paulo, mas fico mandando mensagem pra Vanessa no Rio, perguntando onde eles estão, se estão indo para a serra, pedindo um minuto a minuto da viagem. Espero que os meus filhos não percebam meu medo."

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Chega a pensar em "jogar tudo pro alto e se mandar, viver uma outra vida, longe dessa área de crimes que é o Brasil". "O que falta é coragem de abrir mão do que eu conquistei com muito esforço, muito trabalho, muito amor, e começar de novo."

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Diz que tem andado decepcionado com a situação do país. "Até queria ser uma figura mais sarcástica, mais descontraída. Admiro quem consegue. Mas eu sou capricorniano demais", afirma, antes de beber o restinho do mate na cuia.

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Volta a falar no tema que tem ocupado sua mente, Shakespeare: "Acho que ele é mais otimista do que eu. As peças têm o caos estabelecido pela quebra dos valores morais. Mas no final os agentes do caos morrem todos, e ele oferece uma esperança, uma redenção. Tenho tentado ouvir o que ele diz". Como se estivesse recitando, emenda: "Debaixo da neve mais espessa tem sempre uma semente que germina".


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