Folha de S. Paulo


Ser chamada de musa me incomodava, diz ex-jogadora de vôlei Ana Paula

Com a pele bronzeada, 1,83 m de altura, cabelos compridos com mechas californianas e as longas pernas de fora, a ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel, 43, atrai olhares ao se sentar em uma mesinha na Casa das Rosas, em São Paulo, para tomar um café com o filho, Gabriel, 14.

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"É a Ana Paula do vôlei?", especula a garçonete. Representante do Brasil em quatro Jogos Olímpicos, a atleta terminou a carreira aos 38 anos, no vôlei de praia. Mas até hoje é lembrada pela participação na seleção que conquistou o bronze para o Brasil, em 1996. A contragosto, foi eleita a "musa" do time de Bernardinho.

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"Essa bobagem me incomodava muito", conta ela à repórter Letícia Mori. "Eu estava despontando tecnicamente no cenário internacional. Treinei anos para estar entre as melhores e aí o cara vem falar da minha bunda, falar do rostinho."

A jogadora –que está no Brasil para negociar os direitos de um livro sobre bullying– conta que até então nunca tinha sido considerada bonita. "Até os 17 anos eu era desengonçada, magricela, dentuça, com a cabeça maior que o corpo, braço comprido, desproporcional, sem peito, sem bunda", diz ela, que nasceu em Lavras, interior de Minas Gerais.

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"Sofri bullying por ser muito magra. Era tímida, enrustida, vivia dentro da minha conchinha. As pessoas me botavam pra baixo, me davam mil apelidos: Olívia Palito, vara de cutucar estrela. Saco de osso era o favorito das crianças. Eu dizia que iria jogar em uma Olimpíada e isso também virou motivo de chacota."

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Morando na Califórnia (EUA) desde 2010, quando se casou com o jogador americano Carl Henkel, Ana diz que não sabia o que significava bullying até a palavra "entrar na moda". "Fui ver o que era e pensei: 'Olha lá. É o nome técnico do que sofri'."

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A ideia do livro surgiu há quatro anos, quando passou a ser chamada para dar palestras em escolas americanas. "Comecei na classe do meu filho, essa coisa do dia da profissão. Eu contava histórias, dizia para eles acreditarem em si mesmos, não desistirem dos sonhos. Muitos pais passaram a me procurar, pedindo para eu conversar com as crianças porque elas se identificavam com o que eu tinha passado."

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Um caso a marcou. "Era uma menininha linda, loirinha, de aparelho nos dentes. A mãe dela me encontrou na escola e falou: 'Minha filha estuda na sala do seu filho e eu tenho que te agradecer, porque ela chegou em casa toda animada, dizendo que tinha conhecido uma atleta olímpica'. No segundo dia, pediu para a mãe comprar um batom. E explicou: 'A Ana disse que todo mundo tem uma beleza. Quero achar a minha'."

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"Quando senti essa procura, vi que eu era canal para falar o que o esporte faz, como ele me ajudou a ter autoestima, a me defender."

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Tomando o segundo cafezinho do dia, Ana relata o episódio mais cruel pelo qual considera ter passado, em um torneio em Montes Claros. Ela tinha 13 anos. Colegas queriam trocar fotografias 3 x 4.

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"Pensei: 'Nossa, que legal, estou começando a me enturmar'. Minha foto não era das melhores, minha mãe tinha feito permanente no meu cabelo, estava enorme, feio, seco, e eu usava aparelho. No dia seguinte, acordei com uma risaiada", conta.

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Colada na porta, uma cartolina elegia as meninas mais feias do campeonato. "Tinha fotos minhas rabiscadas com chifre, dentes salientes, corpinho magricelo", diz ela.

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"Minha mãe estava viajando com a gente. Até ela começou a chorar." Os pais só perceberam o que a filha estava passando após episódios extremos como esse. "Eu não queria contar porque meu pai era o diretor da escola onde eu estudava."

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Certa vez empurrou um garoto que a provocava. Foi parar na diretoria. "Cheguei de cabeça baixa, com medo que meu pai ficasse desapontado comigo por ter arrumado uma briga", relembra. Ouviu que tanto ela quanto o garoto estavam errados.

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Mais tarde, ao chegar em casa, o pai mudou o discurso. "Ele disse: 'Eu não sabia que isso estava acontecendo. Hoje quem você viu conversar foi o diretor, agora vou falar como pai. Nunca puxe uma briga, mas, se alguém encostar o dedo em você, enfia a mão na cara dessa pessoa!'", conta a esportista.

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Sentado ao seu lado, o filho, Gabriel, dá risadinhas.

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"Olha aí, tá rindo porque eu já passei isso pra ele, quando começou a sofrer coisas parecidas na escola", diz a mãe, que garantiu que estaria ao lado do filho se ele precisasse se defender. Dois dias depois, foi chamada na coordenação do colégio em que Gabriel estudava. "Eu disse que meu filho não vai ser um bunda mole. Eu educo para tentar resolver na paz. Mas a partir do momento que o bullying não cessa e começam a agredir..."

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Ana Paula faz uma pausa para olhar o celular, que não para de apitar. "É o Twitter", diz. Usuária da rede social desde 2009, ela viu o número de seguidores disparar durante as eleições de 2014, quando declarou seu apoio ao então candidato Aécio Neves.

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"Um amigo dizia que, na quadra, enquanto a torcida adversária não te xinga, é porque você ainda não está incomodando. Durante anos fiquei esperando ser xingada. No Twitter é igual. Se nenhum petista me xingou hoje é porque não fiz um bom trabalho", brinca.

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Ela diz que pensa em voltar para o país, mas não "com o atual cenário". "A economia vai mal, a política está em crise. Sinceramente, foi um livramento pro Aécio, porque ia estourar uma bomba no colo dele."

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Os 55 mil seguidores e o "buzz" que criou com seus posts polêmicos resultaram em dois convites para se candidatar a deputada, ambos recusados. "Muita gente do esporte pode ter uma veia política por causa do contato que temos com o público. Mas sou apartidária. Minha bandeira é o Brasil."

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Livre da síndrome do pânico que teve pouco antes de se aposentar, a ex-jogadora está se formando em arquitetura e já abriu um escritório na Califórnia. Dá aulas de vôlei para garotas que tentam bolsas em faculdades americanas e foi sondada pela Record e pela emissora americana NBC para cobrir a Olimpíada no Rio.

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Antes que a atleta vá embora, a garçonete, que ficou por perto durante a conversa, junta coragem e se aproxima. Simpática, Ana Paula tira foto, dá autógrafo e diz que nunca nega atenção. "Quando eu era nova fui pedir autógrafo pro [ex-jogador de vôlei] Bernard e ele fez cara fechada. Fiquei arrasada", conta. "Então sempre atendo a todos. Não quero traumatizar ninguém."


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