Folha de S. Paulo


Dias tristes na América

A mais recente edição da publicação "The New York Review of Books" trouxe resenha sobre mais uma obra que aborda a escalada da desigualdade nos Estados Unidos e a crise do "sonho americano". O título deste artigo é uma tradução livre do título da resenha de "Our Kids: The American Dream in Crisis", de Robert D. Putnam. Aviso ao leitor: este não é mais um texto sobre o livro-sensação de Thomas Piketty.

Embora o rigor empírico seja comum às duas obras, a abordagem de Putnam sobre o tema da desigualdade é nada semelhante à de Piketty. O autor americano não está interessado no mundo rarefeito dos muito ricos, aqueles que o francês esmiúça para traçar diagnóstico preocupante: os muito ricos, mais dia menos dia, terão acumulado tanta riqueza que já não precisarão trabalhar –tal qual a aristocracia europeia do século 19.

Para Putnam, não é a acumulação de capital na forma de bens e ativos que explica a diferença entre o futuro promissor de uma criança e a desesperança de outra. A diferença resulta da acumulação de "capital social": a rede de amizades e conexões sociais de cada um.

Portanto, o grupo de interesse para o cientista político e professor de Harvard é a parcela da população norte-americana que tem grau universitário e foco intenso na formação de seus filhos.

São aqueles que desfrutam de boa saúde e de uma rede invejável de relações que pode ser utilizada em prol de seus filhos.

Curiosamente, essa camada próspera da população norte-americana educa seus filhos nas escolas públicas dos bairros em que vive, não em instituições privadas.

Diferentemente de Piketty e de outros estudiosos da desigualdade, Putnam divide a população não em faixas de renda, mas em níveis de educação. O que tal divisão revela é que aqueles com mais anos de estudo, além de mais prósperos, desfrutam de estabilidade familiar muito favorável a seus filhos: em contraste com domicílios em que prevalece nível educacional mais baixo, pais com maior nível de educação tendem a estar presentes na vida das crianças e a ajudá-las a chegar à universidade, perpetuando o ciclo auspicioso.

Já nas famílias com menos educação, pais e mães –muitas vezes solteiros– não têm condições de dar a mesma atenção às crianças, resultando em um ciclo de desesperança. Desesperança que marca muitas cidades americanas, como revelaram os protestos recentes em Baltimore, Maryland.

Ao contrário do que ocorre no Brasil, há alguma esperança para essas crianças. Diversos estudos acadêmicos recentes feitos por pesquisadores da Universidade Harvard mostram que políticas públicas que ajudem famílias desavantajadas a mudar de bairro, isto é, a viver em locais onde haja melhores escolas públicas e oportunidades de acumular "capital social", alteram as perspectivas socioeconômicas das crianças.

Quem nos dera poder chamar de apenas tristes os dias de nossas crianças. As escolas públicas do país são sofríveis, crianças que vivem em regiões e bairros carentes raramente têm a oportunidade de interagir e criar laços sociais diversos –não há como acumular "capital social". E essa é uma das grandes tragédias da nossa desigualdade.


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