Folha de S. Paulo


Os desafios da divergência dos bancos centrais

O Banco Central Europeu aliviou a política monetária na semana passada, embora não o suficiente para agradar os mercados. Mas há uma ampla expectativa de que o Federal Reserve (o banco central dos EUA) aumente as taxas de juro de curto prazo na próxima semana. Essa divergência entre os bancos centrais mais importantes do mundo deve se provar significativa. Será que isso faz sentido para cada um deles, tendo em conta os seus próprios mandatos? E quais as complicações que isso pode criar para o mundo?

De imediato, a resposta para a primeira pergunta é simples: sim. O Fed e o BCE devem seguir políticas diferentes, pois suas economias estão em lugares muito diferentes.

Como a presidente do Fed, Janet Yellen, assinalou na semana passada, a economia dos EUA tem desfrutado de uma recuperação sustentada desde a Grande Recessão. A taxa de desemprego caiu de um pico pós-crise de 10% para 5%. A taxa anual do núcleo da inflação dos preços ao consumidor —que exclui alimentos e energia— também está perto (embora abaixo) da meta de 2%.

Dados todos esses fatos, parece razoável argumentar que a economia dos EUA está crescendo bem acima da taxa potencial e também está perto o suficiente do pleno emprego para o aperto começar.

A zona do euro está em um lugar muito diferente, como observou o presidente de BCE, Mario Draghi, em mais um discurso significativo em Nova York, na semana passada. A zona do euro não tem desfrutado de uma forte recuperação da Grande Recessão e da recessão subsequente na zona do euro.

Pelo contrário, no segundo trimestre deste ano a demanda interna real ainda era 3,5% mais baixa do que antes da crise. Desde o pico de 12,1% no início de 2013, a taxa de desemprego caiu para 10,8%. Como ressaltou Draghi, o BCE não está conseguindo cumprir seu mandato de garantir a estabilidade de preços, definido pelo próprio banco como: uma taxa de IPC (índice de preços ao consumidor) "mais baixa, porém próxima de 2%".

Em outubro comparado com o mesmo mês de 2014, o núcleo do IPC foi de apenas 1,1% e a taxa global, de apenas 0,1%. Na verdade, o núcleo da inflação na zona do euro na comparação com o mesmo mês do ano anterior tem sido inferior a 2% desde março de 2013.

Para cumprir seus mandatos, os bancos centrais deveriam se comportar de maneira diferente. Mas isso não significa que o que estão prestes a fazer esteja certo. Em parte porque seus mandatos são diferentes e também porque ambos são muito conservadores.

Primeiro, o Fed. Aqui estão quatro razões pelas quais a contrariedade em relação à alta das taxas ainda é forte. Em primeiro lugar, não há nenhum sinal de pressão inflacionária significativa. A força do dólar também vai manter a inflação sob controle. Em segundo, se o Fed estivesse perseguindo uma política simétrica, a inflação deveria estar acima de 2%, tanto quanto abaixo.

Na verdade, o núcleo da inflação ficou inferior a 2% na maior parte do tempo desde o final de 2008. Em terceiro, há um risco real de que o aperto tenha um efeito negativo maior sobre a economia do que o esperado, especialmente se ele for visto como o primeiro de muitos movimentos (apesar de gradual). Diante disso, há um risco substancial de que a taxa de juros seja fortemente puxada para baixo contra o limite inferior a zero na próxima (e possivelmente bastante iminente) recessão.

Por último e mais importante, enquanto o desemprego está baixo, a taxa de participação também está. Há uma boa chance de que, se a economia se aquecer, mais trabalhadores serão puxados para a força de trabalho. É possível, também, que isso acelere o investimento e o crescimento da produtividade, mantendo a inflação sob controle. Assim, os riscos do aperto superam os da espera.

Alguns argumentarão que o atraso gera risco de desestabilizar ainda mais o sistema financeiro. Esse ponto de vista é problemático. Se a política monetária que estabiliza oferta e demanda na economia real desestabiliza o sistema financeiro, o problema está no segundo. Ele deve ser tratado com força e de forma direta.

O BCE, por sua vez, decepcionou os mercados. Isso não é importante por si só. O trabalho dele não é agradar mercados, mas estabilizar a economia da zona euro. Ainda assim, a instituição simplesmente baixou a taxa de depósito em 10 pontos base, estendendo o afrouxamento monetário ("quantative easing") em inalterados € 60 bilhões por mês, por seis meses, até março de 2017. Isso simplesmente não pode ser qualificado como uma ação decisiva.
Em seu discurso em Nova York, Draghi pareceu reconhecer isso.

Ele abordou três pontos fundamentais. As políticas agressivas de hoje estão funcionando; a flexibilização da semana passada foi significativa; e "não pode haver nenhum limite para o quanto estamos dispostos a usar nossos instrumentos dentro do nosso mandato e para cumprir o nosso mandato". Os pontos são razoáveis. Mesmo assim, o BCE deveria ter anunciado que vai continuar com o afrouxamento monetário até atingir sua meta de inflação. A fraqueza desnecessária da economia da zona euro durou tempo demais.

Quaisquer que sejam as desvantagens das decisões dos dois bancos centrais, o panorama geral é claro. Os EUA estão anos à frente da zona do euro em sua recuperação e estão, consequentemente, em uma fase diferente do ciclo da política monetária. É provável que a divergência aumente modestamente nos próximos anos. O Fed também deve divergir cada vez mais do Banco do Japão, que permanecerá ultra-frouxo, e do Banco Popular da China, que está afrouxando (embora a partir de um ponto de partida mais apertado).

Para voltar à questão das potenciais complicações dessa divergência, é provável que ela intensifique a força do dólar, que por sua vez, agravaria as dificuldades de tomadores de empréstimos denominados em dólar. Mas também seria arriscado extrapolar a divergência com confiança demais. O Fed pode descobrir que a economia dos EUA não é tão forte quanto acredita, sobretudo por causa da força do dólar. Se for assim, o aperto precisa ser pequeno e breve.

Apesar de existirem boas razões para a divergência, a experiência nos faz lembrar o perigo do excesso de confiança. O Banco Central do Japão tem agora taxas de curto prazo próximas de zero por duas décadas. Ele também aumentou as taxas, modestamente, em 2000 e em 2006 e 2007. Foi forçado a reverter [a política]. O Fed deve observar este precedente preocupante.


Tradução de MARIA PAULA AUTRAN


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