Folha de S. Paulo


No outro lado do rio

Em 2/6/2012, iniciei esta coluna citando Fernando Teixeira de Andrade: "Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos".

Reli o artigo no qual percorro os rituais de passagem existentes em todas as culturas.

Mas o inconsciente é muito forte e quando assume a "pena" a escrita traduz o que, naquele momento, não era percebido com clareza.

Fechei em 2012: "As certezas e os sonhos a serem descartados são o mais difícil na travessia... Largar as roupas que nos levam aos mesmos lugares".

Não se trata de roupas velhas. Elas podem ser trocadas. Novas composições podem modernizar qualquer armário. Nem me refiro aos mesmos lugares, pois se eles são adequados, produzem alento e desafio e, se ainda fazem sentido no que almejamos, é bom demais. O problema é que no caso das roupas o rei está nu. Viraram geleia.

Os caminhos, infelizmente, não nos levaram aos lugares compartilhados e sonhados. O caminho "descaminhou". É o tempo da travessia. Que tem que ser feita sob a pena de perder a alma. Muitos, na história política, já fizeram mudanças, rupturas, por motivos e preços diversos nas suas biografias.

Já escrevi que não se chega à outra margem do rio sem respingos. Sempre existe o risco de afogamento. O difícil é tomar a decisão, mas quando ela é tomada, e nunca é fácil, não há força que segure a mudança e o crescimento.

Este tipo de decisão, não ocorre da noite para o dia. São ações, percepções, simbologias que vão se somando e por mais que não se queira entender o traçado e ver com nitidez onde tudo desemboca, elas não desocupam a mente. Como ondas, vão e vem. Mas quanto mais o mar está turbulento menos se consegue segurar o navio. Ou achar o armário bonito. Quanto mais se acreditou no sonho, na utopia, num mundo melhor, quanto mais se investiu, se privou, compartilhou, engoliu injustiça, mais difícil ver luz no túnel. É a hora que não tem mais como usar mecanismo de negação.

É chegado o momento da travessia: de cabeça erguida e muita coragem.

"Finco meu remo na água

Levo teu remo no meu

Acredito ter visto uma luz

No outro lado do rio...

Ouço uma voz que me chama

rema, rema, rema, rema...

Eu muito séria vou remando

E bem lá dentro sorrio

Creio ter visto uma luz

No outro lado do rio..."

Jorge Drexler.


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