Folha de S. Paulo


A lebre

''Levantei a lebre, cabe a você dar uma investigada''. Assim, em tom de desafio, terminava a mensagem eletrônica enviada ao ombudsman pelo leitor João Linneu do Amaral Prado Filho, no dia 17 de fevereiro passado.

A ''investigada'' sugerida por Prado Filho resultou no caso de resolução mais demorada dessa minha gestão.

Até hoje, a Folha não corrigiu o erro publicado.

O leitor apontava erro na coluna ''Lanterna na Popa'', do deputado Roberto Campos, publicada aos domingos na Folha, em ''O Globo'' e outros jornais. Na epígrafe do texto, que circulara em 16 de fevereiro, o deputado e ex-ministro atribuía ao escritor argentino Jorge Luís Borges o seguinte texto:

''Si pudiera vivir novamente mi vida, en la prójima trataría de cometer más errores. No intentaría ser tan perfecto, me relajaría más''.
Dizia o leitor em sua mensagem eletrônica:

''É muito difundido no Brasil um texto, chamado 'Instantes' e atribuído a Jorge Luís Borges; sendo que o seu início é justamente a citação utilizada pelo sr. Roberto Campos. Também lembro-me, por pessoas especializadas em JLB, que tal texto não tem a qualidade dos de Borges e que nunca foi escrito por ele. Levantei a lebre...''

PESQUISA

Após receber a mensagem, entrei em contato com o professor Davi Arrigucci Jr., crítico literário e professor de literatura. Ele se lembrava de ter lido, na própria Folha, um artigo do escritor Moacyr Scliar sobre o assunto.

Telefonei para Scliar no Rio Grande do Sul. O escritor contou a incrível história de ''Instantes''. O texto, escrito na forma de um poema, chegou-lhe às mãos num congresso de saúde pública, em 1987, em Rosario, na Argentina. O escritor já o tinha visto afixado em vitrines da cidade. Scliar transcreveu-o no jornal ''Zero Hora'', com grande repercussão. Surgiram cópias, que ele encontrava penduradas em ''lugares os mais variados, casas de amigos, restaurantes, repartições públicas''.

AUTO-AJUDA

Tempos depois, num encontro com a viúva de Borges, Maria Kodama, soube que a verdadeira autora do texto seria a norte-americana Nadine Stair. Indignada e disposta a contestar a suposta autoria de Borges, Kodama chegou a recorrer ao Ministério da Cultura argentino, sem sucesso.

A viúva de Borges teria movido uma ação judicial contra a revista ''Uno Mismo'', a primeira a atribuir falsamente o texto a Borges, em 1986. O fato é que o ''poema'' ganhou o mundo, em livros de auto-ajuda, quadros, toalhas, lembranças de todo tipo vendidas em lojas de beira de estrada.

A história de Scliar coincidia com o texto ''A fragilidade da falsificação'', que ele escrevera para a própria Folha no final de 1995.

TOM

Com base nesse relato, o caso foi encaminhado à Redação no dia 19 de fevereiro. A resposta veio em 14 de março. Em geral, é de até uma semana o prazo estabelecido com a Redação para as respostas aos leitores, sendo que há manifestações que merecem decisão imediata, levada a cabo na edição seguinte.

Dizia a resposta da Redação, em tom peremptório: ''A citação consta nas obras completas de Jorge Luís Borges. Está publicada lá. A discussão se o texto é apócrifo ou não... não cabe à Folha responder''.

Não é incomum receber respostas desse tipo. Nesses casos, descarta-se o suposto erro. Evita-se o reconhecimento. O tom é definitivo, duro, seco.

A atitude é compreensível: a falha é computada, pode causar incômodos profissionais, influir na avaliação do jornalista envolvido; a carga de trabalho é muito grande, os envolvidos têm outras atribuições a preencher.

Mas, no caso, o autor do erro não era funcionário da Folha. Era um jornalista, político, um prócer do ultraliberalismo, um personagem polêmico, quase intocável. Apesar disso, não havia razão objetiva para que a correção não fosse feita com rapidez.

BARCELONA

Dispus-me, então, a consultar as ''Obras Completas'' de Borges, desejava apresentá-las à Redação. Consultei livraria de obras em castelhano, para encomendar os quatro volumes, mas o preço não era nada convidativo: R$ 70,00 por volume.

A oportunidade surgiu na viagem para o reunião anual da ONO (Organization of News Ombudsmen). Numa cidade como Barcelona, em que se tem a impressão de existirem tantas livrarias como padarias há em São Paulo, não foi difícil encontrar os livros pela metade do preço daqui: R$ 35,00. Deu para comprar até um outro volume mais grosso com tudo que Borges produziu em parceria com outros autores.

De volta, a primeira providência foi pesquisar os livros. ''Instantes'' não existe nas obras completas de Jorge Luís Borges. Em 13 de junho, pedi à Redação que apontasse nas ''Obras'' o poema que ela dissera existir ali.
Coloquei os catataus à disposição para consulta.

A resposta, em 1º de julho, veio em tom diferente, quase oposto, ao da anterior: "Nesse caso, a única pessoa que poderia responder é o próprio Roberto Campos. A secretária dele, Neide, já foi acionada várias vezes ... e não deu resposta ainda. Ela disse que falaria com o Roberto Campos até sexta da semana passada e foi cobrada ontem sobre o caso novamente. Respondeu que RC está muito ocupado e que ainda não tinha obtido resposta...

Mas o fato é que o caso se arrasta há meses e não há resposta de que teria cometido o suposto erro.
Estará sendo cobrada novamente''.

LABIRINTO

Em 21 de julho, pouco mais de seis meses depois do erro, à falta de novas informações da Redação, sugeri a publicação de uma correção que reconhecesse a falha apontada pelo leitor Prado Filho e restabelecesse a verdade. Pedi uma decisão final a respeito.

Após sua própria consulta às ''Obras Completas'', a Redação solicitou que eu formulasse uma sugestão de texto para o Erramos a ser publicado. A sugestão foi enviada em 28 de agosto. Até a sexta-feira passada, o ''Erramos'' não fora publicado.

O assunto não é de importância transcendente. Os rumos do país e do mundo não se alteraram em consequência do erro. Importa mais saber por que há tanta dificuldade para essas correções no meio jornalístico.

Mesmo sendo a Folha a publicação que introduziu a correção de erros em escala industrial, ela ainda o faz com relativa timidez. Já foi dito que, quanto mais importantes são os erros, maior é a dificuldade de reconhecê-los e corrigi-los com o destaque adequado.

A ligação de ''Instantes'' a Borges talvez tenha razões profundas. Em seu texto de dezembro de 1995, Moacyr Scliar escreve que ''Instantes'' traz uma expressão de sabedoria acessível a todos, a derradeira manifestação de um grande escritor: ''Borges, a lenda, supera Borges, o autor''.

A tentativa de correção do erro na Folha parece repetir os labirintos de Borges, inapelavelmente ligado à autoria do texto.

É possível aperfeiçoar a publicação de correções na Folha, de modo a facilitar o reconhecimento dos erros e sua correção rápida e proporcional.

Em condições normais, o jornal ganha confiabilidade não apenas porque erra menos, mas talvez por ser o que se dispõe a corrigir os erros mais importantes com o destaque, a clareza e a presteza que a própria informação incorreta impõe. Talvez fosse mais adequado premiar e não punir os que se dispõem a reconhecer e corrigir com transparência os erros a que os leitores foram expostos.


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