Folha de S. Paulo


Leitores criticam a crítica

''Gostaria de saber se os críticos realmente assistem os filmes, porque no sábado 17 de maio fui assistir 'A Estrada Perdida', que, na verdade, deveria se chamar 'O Tempo Perdido' e/ou 'O Dinheiro Perdido'. Assim é que gastei R$ 8 no cine Belas Artes, além de uma bela escadaria para sair do cinema, mais R$ 13 de estacionamento porque o filme passa de duas horas e o filme é simplesmente horrível!!!!!''

''Já nos primeiros 20 minutos, dá vontade de sair do cinema; não se entende nada de nada; várias pessoas saíram meneando a cabeça! Ao fim, perguntei a várias pessoas ao meu redor, e nenhuma delas entendeu nada do filme. Se esse é um dos melhores filmes da semana, imagine os outros então!...Sugestão: 'O Quinto Elemento'. Dei boas risadas por R$ 4. Atenciosamente, Maria Helena (São Paulo)''

A carta citada acima expressa a reação comum a vários leitores, que em geral optam pelo silêncio. Mostra a tensão que existe entre os críticos e seu público. Nesta última coluna da série sobre os críticos de artes e espetáculos, os leitores manifestam suas insatisfações. Queixam-se de que a crítica recomenda espetáculos ruins e herméticos, que é mal-humorada e desrespeitosa, parcial, irracional e subjetiva.

Existem exceções, mas as críticas de artes e espetáculos surgem aos olhos de muitos leitores como análises pouco claras, que não denotam um esforço de transparência do autor no sentido de dividir com o público os critérios com que trabalha.

Além disso, aqui e ali, a crítica acaba sendo o palco dos caprichos do crítico, que tende, em geral, a minimizar seu poder e influência.

Nem sempre se nota um esforço do crítico no sentido de respeitar a obra criticada, de torná-la acessível ao público leitor.

Há um certo culto ao estilo justiceiro na crítica, exagerando as características de uma função já em si perversa, em que o julgador tem que opinar sobre aquilo que é ou não digno de apreciação estética ou diversão.

Muitas vezes, o crítico se expõe mais do que desvenda a obra criticada. É mais ou menos inevitável que assim seja. Mas seria legítimo exigir mais moderação dos críticos? O leitor Paulo Chacon acha que sim, ao se referir a um trabalho do colunista Marcelo Coelho: ''Como crítico, tendo o espaço que tem na sua coluna, espera-se um pouco mais de respeito, imparcialidade, racionalidade na avaliação de uma obra de arte, procurando ao contrário expurgar a subjetividade inerente a esse tipo de análise. Isso porque tal espaço (a coluna) lhe confere muito poder''.

A observação de Chacon refere-se a uma coluna de Marcelo Coelho, que, entre outros argumentos sobre o livro ''Cartilha do Silêncio'', do escritor regionalista Francisco J. C. Dantas, emitiu a seguinte opinião: ''Trata-se de livro ruim, visivelmente ruim, insuportavelmente ruim''. Para o missivista, o tom de Coelho é tão raivoso que nem a orelha do livro escapa: ''A orelha é tão ruim que o próprio autor teria sido capaz de escrevê-la'', escreveu Coelho, citado por Chacon.

Ouvido, Coelho argumenta que sua crítica reproduzia trechos que ele considerava ruins no livro, os quais ele publicou para suportar seu julgamento: ''Não sei se o tom é raivoso, acho-o contundente e à altura dos trechos da obra que foram citados. O julgamento do leitor também é subjetivo. A única saída é chocar as duas subjetividades, a minha e a do leitor, e cotejá-las com os trechos citados da obra''.

Como é possível ''expurgar'' a subjetividade de uma apreciação crítica, em que a relação do observador com a obra as identidades que se estabelecem, a intensidade da fruição, o envolvimento distanciado precisa ser também tão particular e íntima, tão pessoal, peculiar, tão pouco ''objetiva''?

O expurgo total da subjetividade é o expurgo da crítica em si. Apesar disso, a tese do leitor tem procedência. É possível adotar alguns caminhos que reforcem uma espécie de ética da crítica, que regule e contenha a aleatoriedade e a violência inerentes a qualquer juízo.

A crítica pode e deve evitar ataques à pessoa do artista ou do autor do espetáculo, abrir mão das ofensas pessoais.

Ao leitor Gil Lopes, do Rio, repugna o ''traço 'Zé Fernandes' da crítica de segundos cadernos'', numa alusão ao mal-humorado ''jurado'' José Fernandes, que fez fama em programas de auditório dos anos 60. Segundo Lopes, esse ''estilo'' ainda não foi abandonado pelas editorias. O leitor pede que ele seja substituído por mais imaginação e criatividade.

A crítica deve também estar atenta para não eternizar preconceitos ou corroborar modismos a respeito do que é ou não aceitável no panorama das idéias e dos comportamentos.

A marca da crítica deveria ser justamente a tolerância, a abertura para incluir no terreno cultural mais formas de expressão, reflexões, vivências. Ela não pode deixar de relacionar sua análise com o contexto político, econômico e histórico. O papel da crítica, aliás, é essencial nessa função integradora de aspectos, idéias e comportamentos até então não admitidos.

Aqui surge uma questão essencial: a do chamado mercado cultural e de entretenimento. A arte, com frequência, se manifesta na contracorrente do mercado. Cabe à crítica, não raramente, chancelar determinada obra ou artista que, à luz do gosto vigente, soa estranha, incompreensível, de mau gosto, inadequada. A esse respeito, por exemplo, teve pré-estréia há poucos dias em São Paulo o filme canadense ''Kissed'', de Lynne Stopkewich, em que a personagem principal tem prazer com cadáveres da funerária em que trabalha. Imagino a dificuldade que um crítico deva sentir ao tentar ''digerir'' algo desse tipo.

Sobre o trabalho crítico convergem influências e exigências contraditórias. Deve falar ao leitor médio, mas não se contentar apenas com o gosto médio. Só pode analisar uma obra se se envolver com ela, mas é obrigado a manter o distanciamento.

A saída está na busca de uma posição crítica conciliatória, intermediária, sóbria, transparente e humilde diante de leitores e artistas. Como constata o leitor Paulo Venturelli, de Curitiba, referindo-se às respostas que oito críticos da Folha, em domingos anteriores, deram a perguntas formuladas por mim:

''(Na coluna 'Os críticos se explicam') está um perfil diferente dos críticos. Eles saem do pedestal, do discurso arrogante, mostram-se humanos, porque capazes da dúvida e da humildade de reconhecer erros. Não são ali os deuses portadores da verdade eterna.''

E acrescenta, em tom de balanço: ''Depois de tudo, creio que a linha crítica da Folha deve continuar. Não teria sentido o jornal transformar-se num mostruário encomiástico da arte do país. Mesmo quando fere fundo, isso é saudável: evita que a gente seja levado pela emoção do momento. E criticar é isso mesmo: abrir os olhos, não importando o incômodo. É um modo profissional de superar os 'achismos' que dominam a sociedade.''

A crítica desempenha seu papel se, eticamente, se dedica a encontrar uma improvável verdade, em conduzir a reflexão sobre a manifestação artística a um estágio mais desenvolvido, ou seja, mais verdadeiro. Em resumo, críticos e jornalistas garimpam em busca do mesmo metal, mas essa corrida precisa se submeter a limites, para benefício de todos.

FORA DA CAPA

Editores do ''Correio Braziliense'' fizeram uma aposta que merece ser acompanhada. Resolveram bancar a decisão de não publicar com destaque jamais na primeira página, por exemplo referências ao professor Leonardo Teodoro de Castro, classificado pela Polícia Federal como principal suspeito da autoria da explosão do vôo 283 da TAM.

MISTÉRIO NA PARAÍBA

Indícios apontam para a ocorrência de um massacre, pela Polícia Militar, de oito presos durante rebelião na Paraíba, quarta-feira passada. O evento foi festejado por setores da mídia da cidade de João Pessoa. Jornais de São Paulo, inclusive esta Folha, cobriram o assunto com injustificada discrição, diante das dimensões do fato.


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