Folha de S. Paulo


Como criticar aquelas de quem se recebe favor

Participei do seminário "El Papel del Ombudsman y la Ética Periodística", em Bogotá e Cartagena, na quinta e na sexta-feira passadas. O evento contou com a prestigiosa participação de Jesus de la Serna, ombudsman do jornal "El País", e Richard Harwood, colunista e ombudsman do "Whashington Post".

O que mais impressionou no seminário foi a seriedade com que o maior jornal colombiano, "El Tiempo" (290 mil exemplares nos dias de semana e 560 aos dominós), tenta modernizar-se, em meios às contradições de um país tão complexo.

'El Tiempo" tem, há cerca de 15 meses, um ombudsman, o advogado Felipe Zuleta, 33. O jornal, como ocorre na imprensa de outros países sul-americanos, tem vínculos políticos, neste caso, com o Partido Liberal. Seu concorrente, "El Espectador", também defende o Partido Liberal. O outro grande, a outra grande agremiação política do país.

Um dos integrantes da família Santos, proprietária do "El Tiempo", é ministro do Comércio Exterior do presidente Cesar Gaviria Trujillo. Isso, é evidente, não facilita a vida de um ombudsman independente como Zuleta.

Como se sabe, a Colômbia é um país traumatizado pela guerrilha e o narcotráfico, que agravam um quadro de carências sociais equivalentes às brasileiras, embora talvez menos trágicas em si. O jornalismo colombiano tem sido diretamente atingido por ataques de ambos os lados.

Nos últimos quatro anos, o número de jornalistas mortos em atentados de narcotraficantes e terroristas chega a 80 - o país em que mais morrem jornalistas no mundo. Um ex-diretor de redação do "El Tiempo", Francisco Santos, foi sequestrado, ficando em poder de narcotraficantes ligados a Pablo Escobar, do cartel de Medellin, por oito meses.

Para complicar o quadro de interesses em que se enreda o jornal, "El Tiempo" vem diversificando suas áreas de atuação. Agora está disputando a licitação pública para implantação da telefonia móvel colombiana. Há uma inegável semelhança com o caso das organizações Globo, que através da NEC também têm sua posição firmada na área de telefonia do Brasil.

O ombudsman do "El Tiempo", criticando o envolvimento do jornal, em uma de suas palestras, assistida por diretores de seu jornal, disse: "A atuação de jornalistas e veículos coincidentemente em uma época pré-eleitoral situa o jornalismo colombiano numa complicadíssima encruzilhada que o homem da rua expressaria assim: 'como criticar aquele de quem receberei favores?'. Os informados tem o direito de saber que os jornais e o Estado celebraram e celebrarão contratos que põem em risco sua objetividade e independência".

O estado de comoção - na quinta-feira, 17 soldados foram mortos em uma, segundo divulgaram as autoridades, emboscada da guerrilha - provocado pelo estado de guerra interna que dilacera a Colômbia em duas frentes, complica sobremaneira o exercício do jornalismo.

Os órgãos de segurança do Estado são quase sempre as fontes de informações sobre a ordem pública. Os comunicados são em geral otimistas e manipulados com objetivos políticos. Com frequência, inocentes são acusados pelo governo e há jornais, como "El Tiempo", que reproduzem os comunicados oficiais sem qualquer alerta aos leitores.

A comoção nacional transfere-se nos mesmos moldes para a guerra contra o narcotráfico, sem fala no que ocorre no caso dos narcoguerrilheiros, uma associação das duas modalidades. Há pouco mais de 15 dias, o "defensor del pueblo" colombiano (espécie de procurador da Rerpública) divulgou um relatório sobre violações de direitos humanos no país. O relatório abordava centenas de casos, inclusive de tortura, responsabilizado a guerrilha por violações, mas também as autoridades policiais, em outros casos.

"El Tiempo", por ordem de seu editor-geral, publicou apenas as partes do relatório que se referiam às violações cometidas pelos guerrilheiros. O título da reportagem que aludia às violações era "Coordenadoria guerrilheira tortura civis e soldados inocentes".

O ombudsman do "El Tiempo" escreveu em sua coluna dominical que o noticiário foi intencionalmente manipulado, o que foi uma atitude corajosa, podendo ser, entretanto entendida por alguns setores mais radicais de direita como proteção para aquelas aos quais a lei não permite que sejam protegidos, os guerrilheiros que atentam contra a segurança do Estado.

Só podemos saber de tudo isso porque agora há um ombudsman na Colômbia. Outros jornais devem ter os mesmos problemas, mas não há como sabe-lo. Devo corrigir-me. Há um outro ombudsman em um jornal colombiano, uma mulher, Sonia Diaz Mantilla, que é também diretora de seu jornal "Vanguardia Liberal". Diaz Martilla dispõe-se a abandonar uma das duas posições que acumula para encerrar o conflito entre os papéis que assumiu.


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