Folha de S. Paulo


Alpinismo jornalístico

A revista da Folha, que circula apenas regionalmente numa área que se pode denominar de Grande São Paulo ampliada, traz em geral reportagem de capa açucarada e promocional. São muitas vezes perfis no estilo levanta a bola, que não pretendem espantar a preguiça de leitura dominical.

Conta-se alguma fofoquinha, um ou outro segredo é revelado, mas o tom é muitas vezes irrelevante e banal. A namorada do Senna, um especialista em vinho, a mulher de Jô Soares, o líder da Renovação Carismática, as loiras do show de Fausto Faweett, o empresário José Maurício Machline foram alguns dos personagens que viraram capas nos últimos meses.

No domingo passado, a rotina foi interrompida. A capa enfocou a jornalista Tania Nomura, uma sansei de 32 anos, um filho, modelo e promotora de eventos. Já nos textos de capa, num estilo inusualmente agressivo, Nomura é denominada de "alpinista social", "que enfrenta o desprezo dos bem-nascidos mas vai se condessa italiana".

A reportagem interna era simplesmente destruidora. Sob o título "Como fazer carreira na sociedade", o texto se dedica à descrição de uma figura ardilosa, friamente determinada manipular qualquer arma, especialmente a beleza, para chamar atenção sobre si, travar conhecimentos, atrair amizades, conquistar namorados, casar bem e ganhar dinheiro às custas da sedução. Tudo bem, se para construir esse perfil a revista não tivesse que apelar ao que há de pior no jornalismo, ou seja, torcer fatos, lançar conjecturas difamantes, enganar a boa-fé das fontes e misturar verdade, meias verdades e inverdades.

A história começa no início de junho, quando a redação da Revista resolveu fazer um perfil "demolidor" (como às vezes se diz entre os jornalistas) de um representante dos social climbers, os tais alpinistas sociais. Várias possibilidades de nomes que poderiam ser os personagens centrais foram levantados até que se decidiu o alvo. A partir daquele momento, consciente ou inconscientemente, tudo foi providenciado com carinho para que não houvesse "problemas".

A biografia de Nomura que a Revista fez não deixa de lado nem a susposta ambição interessada da mãe, despreza fatos que possam ser considerados positivos (como seu trabalho de aproximação entre Brasil e Japão, ou mesmo a atividade da jornalista como moça do tempo durante um ano na TV Cultura). A reportagem lembra porém que tania morou três anos em um barco. De volta a São Paulo fez macrobiótica, conheceu John Cage, que era conhecido de Haroldo de Campos, daí,m diz a revista vieram em sequencia, Tomie Ohtake, Celso Lafer, Israel Klabin e, o mais importante, o antiquário Pedro Correa do Lago. Tudo para conseguir dinheiro e chegar ao ápice, segundo a revista. Tania vai se casar com um conde italiano.
Pedro, ainda segundo a revista, teria instantaneamente se apaixonado por Tania ao vê-la fazer strip-tease pulando numa cama elástica durante uma festa. Não há nenhuma referência ao fato de que Tãnia e Pedro contestam toda a versão sobre este caso. Ambos afirmam que já se namoravam antes da festa e que as únicas pelas que Tania tirara na ocasião foram sapatos, meios e um casaco.
Erros factuais, às vezes não são os mais daninhos. A reportagem, assinada pelo repórter Sérgio Dávila, ex-Veja, recém-admitido nos quadros da Revista, também apelava ao conservadorismo usando preconceitos (e até um certo puxa-saquismo) como argumentos de autoridade, mais ou menos na linha de quem diz "quem é essa pobretona que quer se misturar entre os ricos?".

Alguns desses preconceitos eram bem explícitos e ridículos, como o de que Tania não era "bem nascida", na opinião de "especialistas" do quilate de, veja só, Chiquinha Scarpa. O texto dava também curso livre de discriminações mais sérias e perniciosas, como a declaração da atiz Denise Fraga, a respeito da contratação de Tania Nomura para um papel em novela da Globo: "Agora, até aquela menina japonesa vai virar atriz".

Valia até o apelo ao racismo (e se ela fosse negra ou judia?) para "enriquecer" o perfil de Tania. Mas o ponto mais baixo envolveu a sexualidade do seu ex-namorado Correa do Lago e a história em torno da divulgação de uma fita de vídeo que os dois teriam feito privadamente quando estariam transando.

Sem checar nenhuma delas, a reportagem relata duas versões que poderiam explicar o fato de a fita ser sido projetada para outras pessoas que não o casal em si. Essas versões publicadas na Revista eram atribuídas no texto de Dávila a "uns e outros dizem...". A pior delas afirmava que o próprio Pedro Correa do Lago "incentivou as premières, preocupado com insinuações que eram feitas sobre sua preferência sexual".

Se já tínhamos preconceito de classe e racismo, surgem agora especulações, baseadas em procedimentos de apuração precários, sobre a sexualidade de um personagem do noticiário. É antiético que a privacidade das pessoas seja invadida em temas que não têm a menos relevância pública (a não ser que se considere relevante o sentimento de mórbida revanche social que muitas vezes transborda de segmentos estagnados da classe média, jornalistas incluídos). Pior é fazê-lo sem consistência, sem dar chance de defesa aos envolvidos, em aberta oposição ao verbete "ouvir o outro lado" do Manual de Redação da Folha, que visa justamente a atenuar a virulência de casos como esse, para atribuir a outros um estratagema sórdido.

Tania Nomura não só não foi ouvida no que interessava, como foi induzida a pensar que a reportagem seria "sobre sua vida profissional", "positiva". Mais: ela acusa o repórter Sérgio Dávila de usar da confiança previamente existente entre eles (ambos estudaram jornalismo na PUC e tiveram relações profissionais em outro contexto) para obter informações. Na quarta-feira anterior à publicação, alertada sobre o provável teor da reportagem, Nomura ainda tentou um contato com a Revista, mas tudo foi feito par evitar qualquer influência que viesse a atenuar o impacto do texto.

Em sua defesa, o repórter Sérgio Dávila declara que nunca teve amizade com Tania Nomura e negar ter obtido informações a partir de conhecimento anterior. Agora admite, porém, que como homem e branco, pode ter se deixado levar por preconceitos que não levou em consideração.

Caio Tulio Costa, diretor da Revista da Folha, considera que a reportagem foi correta> "Para se feita decentemente, uma reportagem de capa sobre Tanima Nomura não pode ser ingênua". E acrescenta: "O texto deixa claro que ela vive de uma vontade ilimitada de ascensão social, o que para mim é uma coisa legítima".

É incrível o ponto a que podem chegar a prepotência do nosso jornalismo, em que a ética é confundida com ingenuidade ou é interpretada como requisito bom apenas para ser aplicado pelos outros. Num veículo da importância e influência da Folha, que edita um Manual de Redação com princípios éticos claros, decide-se entre quatro paredes destruir a reputação de pessoas e não há nada que se possa fazer para impedir.

De acordo com o surrado estereótipo machista, o modesto sucesso de Tania Nomura foi pintado como produto das atividades de uma Messalina desvairada e insaciável. Nomura e Correa do Lago (também representante da Sothebys no Brasil) são pessoas da comunidade, que tem um trabalho a apresentar aos outros e que vivem dele, nunca cometeram crimes. Detalhes de sua vida não interessam a não ser a um pequeno círculo de amizades, conhecidos e familiares. Quando muito, eventuais extravagâncias merecem cantos das colunas sociais e é só.

A repercussão social do nosso trabalho e o poder de um jornal como a Folha impõem características únicas à atividade jornalística, o que muitas vezes é subestimado. Para isso contribuiu também -por que não?- uma ânsia de sucesso rápido de nossa parte, mesmo que à custa de danos irreparáveis à integridade moral das pessoas. Correções e esclarecimentos são sempre positivos. O ombudsman está aí para isso. Mas há de se convir, têm limitado efeito depois do estrago realizado.


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