Folha de S. Paulo


Quando alguém enfrenta a Folha e o governo

Admitir e corrigir erros é uma rotina já institucionalizada na Folha, mas que raramente repara na medida justa aos danos causados a pessoas atingidas por falhas do noticiário. Além do contraste entre o destaque obtido por algumas informações erradas e a discrição com que elas são corrigidas (o que já levou a que se dissesse que a imprensa erra em manchetes, mas corrige em pés de página), há por vezes uma ativa resistência dos jornalistas à admissão mesmo de erros evidentes.

Este é o caso da sucessão de equívocos jornalísticos em que se transformou o episódio da demissão de Célio França do cargo de diretor do Demor (Departamento de Organização e Modernização Administrativa) da Secretaria da Administração Federal (em 28 de janeiro), sua recontratação como consultor da República (em 12 de fevereiro) e sua segunda exoneração dois dias depois.

A publicação de atos seguidos de contratação e exoneração da mesma pessoa no "Diário Oficial" chamou a atenção da Sucursal de Brasília da Folha. No dia 30 de março passado, o jornal abriu manchete de página no caderno Brasil para o assunto: "Governo nomeia servidor exonerado". Havia ainda um subtítulo extremamente comprometedor: "Irregularidades administrativas levaram à demissão". Evidências de supostas irregularidades, a Folha não mostrava.

OFICIALISMO

A reportagem era baseada quase exclusivamente em declarações do atual ministro-chefe da secretaria Geral da presidencial, Mauro Durante. O texto manifestava o oficialismo que vez por outra ataca o noticiário dos jornais que é oriundo de Brasília.

A reportagem informava que o funcionário Célio França havia sido contratado como consultor da República pelo advogado-geral da União, José de Castro Ferreira, apesar de ter sido demitido recentemente pelo próprio ministro Durante no tempo em que este dirigira interinamente a Secretaria da Administração Federal (SAF). O texto dos repórteres William França e Flávia de Leon repetia que Célio França deixara o emprego "sob a acusação de ter cometido irregularidades administrativas". A informação foi transmitida por Durante aos repórteres, que não a checaram.

OMISSÃO DO OUTRO LADO

Mais abaixo a reportagem entra em detalhes. Célio França fora "exonerado da SAF por uso irregular de passagens aéreas do governo", diz a Folha, sem atribuir a informação diretamente a Durante, que demonstra altruísmo: "Demiti porque não achei justo deixar um pepino desse tamanho para a ministra Erundina".

O ministro contou à Folha, diz a reportagem, que "soube, através de um documento apócrifo, que França 'teria feito viagens indevidas para o Rio'. Cauteloso, o ministro usa o verbo no condicional ("teria"), ao contrário do texto da Folha.

Como recomenda o Novo Manual da Redação, o jornal procurou ouvir o outro lado. Um quadro junto à reportagem principal dizia que a Folha não conseguiu encontrar José de Castro Ferreira, o advogado-geral da União, "às 17h, 17h30, 18h10 e 19h". O principal acusado sequer é citado.

Entende-se a razão da omissão. Denúncias contra José de Castro Ferreira são hoje a mercadoria mais valorizada na imprensa de Brasília. Ele era o alvo real nessa história. Célio França, praticamente desconhecido, parecia apenas uma boa maneira de chegar nele.

FURO

No dia 5 de abril, seis dias depois da publicação da reportagem, a Folha afinal conseguiu ter em mãos a versão do principal acusado, Célio França. Este não penas desmentiu as acusações de Durante como ainda deu à Folha um de seus grandes furos deste ano, a notícia de que o governo vinha desde janeiro contratando funcionários ilegalmente, num gasto que chegava até aquele dia a um total de Cr$ 50 bilhões (US$ 2.21 milhões) para o pagamento de 1.200 funcionários.

Quanto a supostas irregularidades que levaram à sua demissão, França disse que elas eram mentirosas, que não houve qualquer indício, evidência ou sindicância envolvendo seu nome. O motivo real, segundo ele, foi a sua recusa em assinar um memorando preparado por Durante propondo ao governo Itamar um esquema jurídico para "legalizar" as contratações ilegais.

A Folha desmembrou a conversa com França em duas partes. A primeira, sobre as contratações ilegais, era um furo de reportagem interessante para o jornal e saiu logo, na primeira página do dia seguinte, 6 de abril. O governo não negou nada dessa reportagem, fez promessas de tomar medidas de regularizar a situação "até maio". Apesar das promessas, nada até agora parece ter mudado. Os funcionários ilegais continuam recebendo salários sem autorização do Congresso e tomando decisões que podem ser facilmente contestadas na Justiça.

GAVETA

A segunda parte da conversa com a Folha, a que interessava mais pessoalmente a Célio França porque remendava parte de sua reputação, em que ele dava a sua versão para a saída do governo e contestava reportagem do jornal, não foi publicada com tanta presteza, "ficou na gaveta", como se diz no jargão das redações, por mais uma noite.

O texto só foi às bancas no dia 7 de abril e, mesmo assim, apenas na edição destinada a São Paulo (para todos os efeitos, até hoje o "outro lado" não foi publicado em Brasília) e em duas colunas no pé da página (a acusação havia saído no alto em quatro colunas). O título ("Ex-diretor do Demor explica sua demissão") era vago, ao contrário do subtítulo anterior que atribuía a exoneração especificamente a "irregularidades administrativas".

Se o leitor conseguisse localizar a que texto anterior essa reportagem se referia, ele ainda tropeçaria em uma questão mais essencial: quem estava com razão na polêmica entre Durante e França?

Essa reportagem não esclarece as supostas irregularidades cometidas por França com as passagens nem dizia claramente se havia ou não erro no texto anterior. Era um "outro lado" envergonhado, por assim dizer, que repetia no lide que França fora demitido por causa das passagens.

A HISTÓRIA DE FRANÇA

Insatisfeito com a atitude do jornal, Célio França, 47, ligou para mim no dia 14. Ele é um advogado graduado pela UFRJ, com mestrado em economia na Universidade de Pittsburgh e doutorado em administração pública na Universidade da Califórnia. Tem 20 anos de carreira no serviço público, em cerca de 30 cargos. É funcionário da Finep, no Rio, onde mora sua família.

Foi para Brasília no segundo semestre do ano passado, a convite do então ministro João Mellão, com a condição de que pudesse passar os fins-de-semana com a família, segundo diz. A mim, França reivindicou que a Folha reconhecesse claramente que errara ao publicar no subtítulo, sem atribuir a ninguém (ou seja, o próprio jornal assumia a informação), que ele fora demitido por irregularidades.

Queria apenas uma correção: "A Folha denunciou muito bem o problema existente no governo, mas o problema da minha honra continua intocado", afirmou.

'NÃO CABE DISCUTIR'

Em relatório interno sobre o caso, os repórteres William França e Flávia de Leon são de uma sinceridade constrangedora: "Não há erro, já que o ministro responsável pela pasta afirmou - reafirmou , posteriormente - que havia afastado Célio França por "irregularidade administrativas". E aí vem a frase chave: "Não cabe a reportagem discutir quem tem razão na história". Completada logo adiante: "Se houve afastamento é porque houve motivos para tal".

Mas como não cabe à reportagem discutir quem tem razão? Só porque o "ministro responsável pela pasta afirmou". Para que existe a imprensa então? Para acreditar candidamente em ministro?

O relatório teve o apoio da direção da Sucursal de Brasília. Passado quase um mês, a editoria de Política em São Paulo afirmou que não se recorda do que a levou a deixar na gaveta o "outro lado", nem a imitir sua publicação na edição nacional da Folha. A direção do jornal sugeriu que Célio França escrevesse uma carta ao Painel do Leitor, com o compromisso de sua publicação integral.

França não aceitou a sugestão. Resolvi então relatar essa história sobre o esforço de um cidadão para fazer com que barbaridades não prosperem, mesmo à custa de prejuízos profissionais e morais, agravados quando a imprensa deixa se manipular por autoridades que deveriam estar obrigadas a basear suas decisões em algo mais do que documentos apócrifos.


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