Folha de S. Paulo


Os donos do mundo

Ao final dos trabalhos do Seminário Internacional de Ombudsman, promovido pela Folha na quinta e sexta-feira passadas no Hotel Ca'D'Oro em São Paulo, ao menos uma impressão restava sólida a respeito do jornalismo: tais são as restrições ditadas pelas limitações pessoais e a rotina industrial de um grande diário que a ocorrência de erros acaba sendo a probabilidade maior.

Philip Foisie, ombudsman do Serviço de Informações das Forças Armadas Americanas, órgão que edita o jornal "Stars&Stripes", destinado ao pessoal militar alocado em bases na Europa e Ásia, definiu o jornalista ideal como sendo o oposto daquele que faz reportagens preocupado com os prêmios que ela pode vir a lhe dar.

Foisie chegou a defender a extinção de todos os prêmios por considerar que eles instalam uma corrida das vaidades, uma espécie de egojornalismo disfarçado e desesperado que em nada contribuiu para a atividade jornalística no que ela tem de mais essencial, a busca da exatidão, da verdade, da justiça.

Foisie, ex-diretor de Redação do "International Heral Tribune", atribui mais valor a outro tipo de profissional, mais vezes mais obscuro nas redações.

Ele se referiu a um tipo de pessoa que, de tão curiosa, chega a beirar a inocência, alerta aos diversos planos de leitura e repercussão que seu texto, pode term visceralmente consciente de quão falho pode ser seu trabalho, de quão enganosos podem ser seus preconceitos e preferências no momento de julgar o que é importante ou não, obsessivamente empenhada em descobrir erros, checar informações, em perguntar, em fazer aquela última ligação antes de apertar o botão do terminal de computador que dispara sua reportagem para a gráfica.

Em vez disso, não são raros os casos em que o jornalista prefere, numa mescla de autocomplacência e autodefesa, evitar a checagem de informações, a verificação de hipóteses que possam vir a desmentir seu texto já produzido ou enfraquecer os pressupostos unilaterais que embasam a reportagem que ele ainda pretende fazer.

Há uma definição sobre a atividade jornalística na Espanha, conforme disse o redator-chefe do jornal "El País", Juan Cruz, segundo a qual jornalista é gente que diz à gente o que a gente pensa. Cruz acredita porém que na prática jornalista acaba sendo gente que diz à gente o que ele (o jornalista) pensa.

A atuação do ombudsman de imprensa pode vir a contribuir para que aumentem as possibilidades de que haja evolução do jornalismo no sentido de incorporar padrões profissionais mais evoluídos e transformar o leitor numa entidade de fato presente na rotina das preocupações dos jornalistas. Mas isso não é fácil.

Para fazer com que o "The Washington Post"se abalasse a fazer correções, Joseph Laitin, o ombudsman do jornal entre 1986 e 1989, chegou a dar socos na mesa de Bem Bradlee, o comandante da Redação, que muitos julgam o segundo homem mais importante de Washington, atrás apenas do presidente dos Estados Unidos.

É um processo necessariamente contraditório e atritivo, um desafio a uma elite refratária a questionamentos, especialmente os que se dão em público, uma experiência cujas consequências práticas ainda não puderam ser medidas em profundidade.

Coisas importantes mudaram nos jornais após o surgimento do ombudsman. O leitor é atendido quanto escreve, telefona ou visita a publicação. Suas opiniões e queixas são comunicadas à direção. A Folha publica maior número de correções.

Não são fatos raros, porém, absurdos éticos, leviandades do tipo da expressa no título "Cadáver atrapalha trânsito no Minhocão", publicado no caderno Cotidiano no dia 4 de outubro. A notícia sobre a morte uma pessoa era dada sob a ângulo dos transtornos que causou ao tráfego de automóveis e não a partir da preocupação com a pessoa que morreu. Era uma pessoa pobre. Se fosse um empresário ligado à Fiesp, o tratamento seria respeitoso.

Haverá dúvidas sobre a eficácia da instituição do ombudsman enquanto persistir a publicação de reportagens como a de Luiz Antônio Giron, que na capa do suplemento de televisão de domingo passado afirmava que os habitantes da cidade de Lençois (BA) "zurravam" à chegada de atores de TV Globo para a gravação de cenas de uma novela. Zurrar é verbo que designa o som emitido pelos asnos.

Pode-se raciocinar também de forma oposta: o ombudsman será necessário justamente para que absurdos não passem despercebidos, como uma resenha de uma fita de vídeo, publicada na Ilustrada em que a atriz é descrita como "versão feminina de Cláudia Raia".


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