Folha de S. Paulo


Marquês apático do ódio erótico

Lê-se Sade cedo. Como se busca excitação, e o marquês refocila na lascívia repulsiva (coprofagia, incesto, infanticídio etc.), ele é logo deixado de lado. Acha-se pueril a sua fama sulfurina e se segue adiante, à cata de arte que capte o sexo. Ou de pornografia pura e simples, quando não de esbórnia mesmo.

Mas o aristocrata arruinado continua na tocaia. Ele foi uma figura, a sua vida intriga. Domitien Alphonse François mofou 30 dos seus 74 anos em cárceres da Monarquia, da República, do Consulado e do Império. Viu o sol nascer quadrado sob Luiz 16, Robespierre e Bonaparte. Foi sempre em cana por libertinagem. Não poderia ser mau sujeito.

Quanto à sua obra, pense num artista ou crítico de respeito. Pois fique sabendo que ele incensou, ou discutiu a sério, ou adaptou os romances do marquês.

Escritores: Stendhal, Flaubert, Baudelaire. Pintores: Goya, Cézanne, Picasso. Teóricos: Simone de Beauvoir, Foucault, Lacan. Cineastas: Stroheim, Pasolini, Buñuel.

Note-se que os franceses dominam as listas, e que todos os que o enaltecem são europeus. O marquês atravessa mal o Atlântico e os Urais. Mais por decoro do que por estética. Ainda anteontem, em 2013, a pudibunda Coreia do Sul censurou "120 Dias de Sodoma".

A hora de voltar a Sade é agora. Mas não porque em dezembro foi o bicentenário da sua morte. Nem só porque foi publicado na França, na coleção Pléiade, o quarto tomo de suas obras. Deve-se ler Sade porque os tempos são de sadismo.

O volume da Pléiade tem mais de 1.100 páginas. Ele reproduz os grandes livros –"Justine", "Filosofia da Alcova" e "120 Dias de Sodoma"– e retraça a sua intrincada e emocionante história editorial. Há notas em profusão, ensaios copiosos, variantes à exaustão. Tudo ajuda a situar Sade. Mas cuidado para não atolar na erudição.

Os romances do divino marquês trazem as perspectivas do passado e auscultam o pulso do presente. O andamento do seu texto é coercitivo. Implacavelmente, ele combina os rigores da língua clássica, e mesmo a subserviência às regras da sintaxe, com estupros de toda ordem –de corpos, do senso comum, da convivência familiar e social, mesmo da fúria e da obscenidade.

A cada descrição pavorosa, de desumanização bárbara dos parceiros no sexo, se seguem argumentos intelectuais de violência indecente. A ação nunca se afasta da reflexão, nem o mau gosto da filosofice. Sade não tem nada de lúdico, de leve ou lúbrico, como é próprio da literatura erótica. Ele é substantivo, sacrílego, opressivo: goze!

O resultado é a glorificação da anarquia tirânica, da exacerbação do egocentrismo, do exagero de sensações carnais selvagens. O prazer está ausente, contudo. Sadismo não é infligir dor para obter prazer. O sádico faz sofrer, sangra, aflige, faz mal a todos –e ponto, e só, e para nada.

O sádico age assim porque é da sua natureza, porque assim é a Natureza. Não há nela amor, alegria, Eros, pulsão de vida, sequer reprodução: "Uma moça bonita só deve se ocupar de foder e nunca engravidar", diz ele em "A Filosofia da Alcova". Se engravidar, aborte. A morte é o fim da vida.

Essa concepção da natureza tem natureza histórica. Sade foi criatura da revolução de 1789. Mas não a considerava uma violência necessária para aplastar o Antigo Regime e impor a ordem justa. Ele a via como desregramento e exaltação, como suruba perene: "A insurreição deve ser o estado geral permanente de uma república"

O marquês foi também criatura do iluminismo. Ao sadismo, portanto, corresponde uma apatia de fundo, fruto da certeza nas luzes da Razão. Por isso, Adorno viu na Juliette de Sade um único amor, o "amor intellectualis diaboli", o prazer satânico de destruir a civilização com as suas próprias armas.


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