Folha de S. Paulo


O mundo nunca será do jeito que você sonha: aceita que dói menos

No dia em que os Estados Unidos elegeram Donald Trump, só consegui pensar que John Lennon fez um estrago na cabeça das pessoas que cresceram ouvindo "Imagine" e acreditaram que um dia viveríamos num mundo bonito como a letra da música de um Beatle.

A reação na linda bolha em que vivo no Facebook foi parecida quando da eleição de Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro. Muito textão fatalista, muita gente desnorteada, no maior clima de fim de mundo. O mundo está torto, de cabeça para baixo, meio sem saída. Foi o tom do que mais li.

Pois eu tenho duas notícias. Uma boa e uma ruim. A boa é que o mundo não vai acabar, pelo menos não agora e muito menos porque Trump ou Crivella foram eleitos. O ruim é que o mundo sempre foi assim, desse jeito que muita gente agora esperneia "oh, vida, oh, céus, oh, azar!". Desde sempre vivemos rodeados por racismo, machismo, homofobia, xenofobia.

Mas, veja só, com exceção de algumas sociedades onde os direitos e as liberdades individuais são praticamente inexistentes, o mundo todo só tem melhorado nas últimas décadas. Isso não quer dizer que somos uma sociedade justa, liberal, tolerante. A minha, a sua bolha podem dar a impressão de que somos. Caminhamos para isso, mas estamos muito longe dessa realidade como um todo. E é possível que nunca atingiremos esse estágio civilizatório, pelo menos não enquanto eu e você estivermos vivos para ver isso.

Sim, o mundo está melhor. Mas mudanças culturais levam décadas ou séculos para serem absorvidas. A escravatura foi abolida em 1888 no Brasil e ainda hoje o racismo está encruado em nossas vidas. Casais homossexuais já podem casar e ter filhos em muitos países, mas continuam sendo mortos mesmo com esses direitos são garantidos. As pautas feministas voltaram ao debate diário e, espero, não devem mais sair de cena, mas você sabe bem que igualdade de direitos ainda não é real na vida da maioria das mulheres.

Não é incrível que sejam necessárias leis para punir gente que chama negros de macacos, que ofenda e mate homossexuais e estupre mulheres? Sim, mas o fato delas existirem significa que estamos progredindo e essas mudanças são irreversíveis. Eleger políticos conservadores não significa que o mundo vai retroceder. Significa que há muita gente que pensa como eles.

Significa que as mudanças podem demorar mais para se estabelecer e que isso não acontecerá sem resistência. Às vezes, as coisas precisam piorar para melhorar. Não há nenhuma novidade nisso. No entanto, é só olhar a nossa história mais recente e ver como nenhum movimento conservador pode barrar as mudanças sociais que acontecem de tempos em tempos. Mas sempre haverá preconceito e intolerância. Sempre.

Precisamos aceitar que o mundo nunca será esse lugar que imaginamos tão harmônico, tolerante e plural. O que não significa que não devamos brigar para que seja, sem ignorar que nem todo mundo tem o mesmo sonho que eu, você e Lennon.

Aceitar é o primeiro passo para reagir. Histerismo e pessimismo não combinam com gente que quer mudar o mundo. Como disse ontem o querido Gerald Thomas, "é o início de um tempo de provocações".


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