Folha de S. Paulo


O limpador de privadas

Na pequena vila de Kaptagat, no Quênia, a poeira sobe enquanto as pernas velozes dos corredores rasgam a paisagem antes mesmo de o sol nascer. É essa a rotina de um grupo de jovens atletas que sonham dar sequência ao sucesso dos quenianos nas provas de longa distância.

Findo o treino, todos voltam para o alojamento. Uns vão comprar comida, outros cuidam do jardim e há sempre aqueles escolhidos para limpar os banheiros. Ninguém escapa das tarefas. Nem Eliud Kipchoge.

Um olhar mais atento, no entanto, percebe que ele é diferente. Mais velho, 31 anos, divide com os mais novos sua experiência. Não só isso: é o exemplo, o ídolo, aquele que todos querem alcançar. Kipchoge é hoje um dos melhores maratonistas do planeta. Acaba de ganhar o bicampeonato em Londres, sagrando-se o corredor mais veloz todos os tempos naquele percurso –2h03min05s, apenas 8 segundos acima da melhor marca mundial da maratona. Já venceu em Berlim, Chicago, Roterdã e Hamburgo e é um dos favoritos ao pódio na Rio-2016.

Justin Tallis/AFP
TOPSHOT - Kenya's Eliud Kipchoge reacts after crossing the finish line to win the elite men's race of the 2016 London Marathon in central London on April 24, 2016. Eliud Kipchoge of Kenya set a new course record in winning the London Marathon for the second straight year on Sunday. The former track star clocked an unofficial time of 2hrs 03mins 05secs, just eight seconds shy of the world record set by fellow Kenyan Dennis Kimetto at the Berlin Marathon in September 2014. / AFP PHOTO / JUSTIN TALLIS
O queniano Eliud Kipchoge comemora vitória na maratona de Londres

O que ele vive no Quênia é mais ou menos como se Neymar morasse em uma república com os garotos das categorias de base do Santos e também limpasse as privadas.

O que Kipchoge faz ali? Ele escolheu treinar assim. O corredor tem uma casa boa, comprada com parte dos muitos milhares de dólares que já ganhou competindo, onde mora com a família. Mas ele acredita que, se não fizer o sacrifício, não alcançará todo seu potencial como atleta, nem servirá de exemplo.

É quase um estranho numa época em que o dinheiro fala cada vez mais alto, e grandes atletas se transformam em celebridades, acumulando e ostentando fama e milhões. O queniano diz ter uma missão: obter grandes feitos no atletismo, tornar-se lenda e exemplo para as crianças. Quer viajar o mundo ensinando a importância de se exercitar.

Tem outro alvo também: o doping. O uso de substâncias proibidas tem sido a saída que muitos encontram para chegar ao alto nível. Ídolos e até países inteiros têm sido desmascarados e deixado máculas no esporte. O Quênia está sob vigilância e pode ser punido se não apresentar um plano de controle de dopagem efetivo. O atletismo do país é suspeito de acobertar casos e não ser rigoroso no controle do uso de substâncias proibidas.

Ser bem sucedido e provar que é limpo –diz ser submetido a mais de um teste por mês– são uma forma de Kipchoge também defender a tradição do atletismo do Quênia.

Neste país pobre reside um enigma difícil de decifrar. O mundo inteiro corre. Mas os quenianos correm melhor, apesar das condições econômicas adversas. O país é uma referência quando o assunto é corrida de longa distância.

Os bons resultados, no entanto, são frequentemente explicado por preconceitos. Fala-se em vantagens inatas, genéticas, ou em suspeita de trapaça e quase nunca na incrível capacidade de treinar dos quenianos. Kipchoge levanta poeira nas estradas de terra até três vezes por dia. Eles correm em grupos, com vários talentos competindo e se desafiando mutuamente, dia após dia. Para se destacar, é preciso ser craque.

Kipchoge é a mais nova cara desse sistema, o rosto que provavelmente veremos nos Jogos Olímpicos do Rio. Treinando e limpando privadas, ele nos dará uma chance pra admirarmos o fenômeno queniano no atletismo com outros olhos.


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