Folha de S. Paulo


Menino ou menina?

Dutee Chand, 19, é uma corredora indiana que sonha com a Olimpíada. Na pista, podia passar despercebida. Mas já entrou para a história do esporte pelo que fez fora dela.

No ano passado, Dutee ouviu dos cartolas que estava proibida de correr porque seu corpo produz mais hormônios masculinos do que o limite definido pela federação internacional de atletismo (Iaaf) para atletas do sexo feminino.

Grosso modo: ela não poderia ser definida como mulher. Dúvida que a indiana nunca teve. E, exatamente por isso, decidiu não aceitar calada e lutar contra uma das maiores controvérsias do esporte feminino.

Dutee apelou à Corte Arbitral do Esporte (CAS), uma espécie de Supremo Tribunal Federal –o que esse órgão determina afeta a regulação esportiva no mundo todo.

A polêmica sobre os parâmetros que determinam os gêneros no esporte é antiga. E, nesse caso, é fácil ficar ao lado de quem sempre parece injustiçado. É fácil, também, adotar o discurso politicamente correto.

Mas os testes precisam existir. Nos anos 60, por exemplo, países do bloco comunista colocavam homens disfarçados para competir. E em vários esportes, como os de força e velocidade, os homens levam tremenda vantagem sobre as mulheres.

Ainda hoje há muita trapaça e é necessário definir meios para evitá-la. Mas, para barrar os trapaceiros, os dirigentes adotaram métodos controversos. E, mais grave, falhos. Não há evidências suficientes que provem que mulheres com nível alto de testosterona produzida naturalmente pelo corpo levem vantagem sobre as rivais. Só esse dado já deveria pôr em dúvida o parâmetro hormonal.

Pior é o modo como esse controle tem sido feito. No início, as atletas tinham os órgãos genitais analisados. Depois, inseriu-se testes de DNA. Hoje, não são mais examinadas antes de competirem, mas uma simples aparência mais masculinizada ainda é motivo para iniciar uma investigação sobre o gênero da atleta.

Uma vez barrada, ela é orientada a passar por tratamentos hormonais e cirurgias (como diminuição do clitóris e retirada de ovários ou testículos), que geram graves efeitos colaterais e, muitas vezes, não são medicamente justificáveis.

O Brasil já teve dois casos famosos envolvendo teste de feminilidade: da judoca Edinanci Silva e da jogadora de vôlei Érika Coimbra.

Além de terem as carreiras ameaçadas, as atletas lidam com a exposição pública, com pessoas discutindo no bar se são homem ou mulher. O processo, agressivo ao corpo, pode ser emocionalmente devastador.

Por isso, Dutee resolveu brigar. E a CAS lhe deu razão. A corte deu dois anos para a Iaaf achar nova forma cientificamente comprovada de estabelecer a linha que separa homens e mulheres. "O sexo em seres humanos não é simplesmente binário. A natureza não é simples", diz a CAS.

Para Dutee é sim. Ela é mulher. E agora pode correr.

Graham Crouch - 10.set.2014/The New York Times
A corredora indiana Dutee Chand
A corredora indiana Dutee Chand

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