Folha de S. Paulo


Terrorismo inibe nova Guerra Fria

Quando a Rússia de Putin, aproveitando-se da crise na Ucrânia, fez valer a vontade histórica de reincorporar a seus domínios a enorme região da Crimeia, muitos analistas no Ocidente decretaram o nascimento de uma nova Guerra Fria.

A Rússia contemporânea buscaria, à semelhança do que fizera a URSS no pós-Segunda Guerra, uma política expansionista. Estaríamos fadados ao advento de uma nova Cortina de Ferro.

Nesse cenário, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) teria seriamente de considerar alternativas militares de modo a constranger o apetite de Putin.

Tal necessidade de "contenção" por parte do Ocidente, aliada a uma interpretação das palavras e ações originadas no Kremlin desde que Putin assenhorou-se do poder na Rússia, ampararia a tese dos que anteviam uma Guerra Fria 2.0. Tal hipótese encontraria guarida numa famosa frase de Putin –que há um tempo classificou o desmantelamento da União Soviética como o "maior erro estratégico do século 20".

Igor Schuvalov, vice-primeiro-ministro russo, reforçou o tom confrontacionista. Logo após a decretação de sanções econômicas por parte de Washington e Bruxelas a seu país, ele bradou "manda ver" ("bring it on", na tradução do russo para o inglês).

Stephane de Sakutin - 26.nov.2015/AFP
Os presidentes François Hollande (esq.) e Vladimir Putin reúnem-se no Kremlin em 26 de novembro
Os presidentes François Hollande (esq.) e Vladimir Putin reúnem-se no Kremlin no final de novembro

Esse estilo desafiador explica-se pela história da Rússia –país que, ao longo dos séculos, teve o que entende por sua soberania territorial afrontada ao Ocidente e ao Oriente, ao sul ou ao norte. Por isso, se há um país no mundo que sabe aguentar pancada –e também dar–, este é a Rússia.

E, de fato, os russos parecem conviver bem com as sanções, assim como assimilaram muitos boicotes durante o conflito bipolar. Um dos bares mais populares de Moscou hoje chama-se Sanções, e a hashtag "#sanctions" compila piadas sobre o efeito das limitações econômicas sobre o país.

Muito mais impactante é o atual baixo preço internacional do barril de petróleo –o que implica dilacerantes efeitos sobre a renda exportadora russa.

Muitos entusiastas de uma nova Guerra Fria –e EUA, Europa e Rússia estão cheios deles– preferem não apostar no potencial conflituoso entre as duas superpotências econômicas do mundo contemporâneo: EUA e China.

Ambos são demasiado interdependentes do ponto de vista do comércio e dos investimentos. Exportações e importações entre ambos somam US$ 600 bilhões. Os EUA são o principal destino dos investimentos externos chineses, e vice-versa. E a China aloca cerca de um terço de suas imensas reservas cambiais de US$ 4 trilhões para títulos do tesouro norte-americano.

Nesse sentido, em vez de um estranhamento com Pequim, seria muito mais fácil para o Ocidente vilanizar Putin e nele centrar a figura de principal antagonista geoestratégico.

TERRORISMO

No entanto, o recrudescimento do terrorismo internacional nas últimas semanas tem aberto grandes janelas de oportunidade para o titular do Kremlin.

O Estado Islâmico (EI) plantou a rudimentar bomba que levou à derrubada do avião russo da Metrojet no Egito e conduziu a virulência do 13 de novembro em Paris. E, pelo que se sabe até agora, o EI serviu ao menos de inspiração para os assassinatos de San Bernardino, Califórnia, na semana passada.

O flagelo comum do terrorismo, a existência desse "inimigo" de todos, acaba por reaproximar Rússia e Ocidente.

Por um lado, o Kremlin de Putin adoraria ver suas diferenças com EUA e Europa deixadas para trás. Se é verdade que sua popularidade interna ganhou muitos pontos com a reincorporação da Crimeia, Putin sabe que o continuado apoio popular a seu protagonismo depende de que os russos tenham atendido seu desejo de viver num país "normal".

Isso equivale a dizer que prezam sobremaneira a ideia de estabilidade, segurança pública e também maior intercâmbio com o Ocidente. E a luta contra o terrorismo encontra grande eco na Rússia. Excetuando-se o 11 de Setembro, a Rússia é o país em que mais ocorreram atentados terroristas nestes últimos 20 anos.

Por outro lado, se há pouco tempo a França rejeitara continuar a comercialização de equipamentos militares de alta performance à Marinha russa, como os navios de guerra da classe Mistral, a recente visita de François Hollande a Moscou para tratar de ações conjuntas no combate ao terror sinaliza uma normalização do relacionamento bilateral.

E muitos outros líderes europeus apoiam (em sua maioria silenciosamente) os bombardeios que a Força Aérea russa tem empreendido contra alvos do EI na Síria.

Até recentemente, Obama e Putin não se permitiam encarar-se. O informal "tête-à-tête" que os dois mantiveram durante a última reunião da G20 na Turquia, contudo, exprime o nível de gravidade com que gigantes como EUA e Rússia abordam o fragmentário EI –e como estão dispostos a cooperar no enfrentamento desse pesadelo.

''Os inimigos de meus inimigos são meus amigos." Essa conhecida lógica do jogo estratégico está operando uma inesperada reaproximação entre Moscou e as capitais ocidentais.

O terrorismo, assim, funciona como poderoso inibidor do que muitos pareciam acreditar ser uma reedição da Guerra Fria.


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