Folha de S. Paulo


Zeros à esquerda

Caruaru, Campinas, Eldorado dos Carajás: a barbárie avança no Brasil. A imprensa assiste a tudo e se cala. Publicar manchetes chorosas sobre o sangue derramado é o mesmo que se calar.

Todos se indignam, mas ninguém se responsabiliza. Os 42 de Caruaru e os 19 de Eldorado amanhã serão notícia de anteontem. Seu destino é o dos 111 do Carandiru, dos 21 de Nova Brasília. O país do futuro tem pressa de esquecer.

O Brasil não quer aprender. Seu passado, recente ou remoto, é moralmente insuportável.

Funcionários crucificados

A imprensa tem muito a ver com isso. Na área da saúde pública e da violência rural ou urbana, a verdadeira notícia deveria vir antes da tragédia. Aquela velha conversa de captar tendências, antecipar os fatos. Ou isso vale apenas para o mundinho fashion e os descolados de Maresias?

Nessa outra praia, jornais e revistas só exibem barrigas. Manchetes jacobinas sobre as terras da Igreja Católica não têm o condão de resolver o problema fundiário. Pesquisas de opinião com usuários não esgotam a avaliação do arrastão arranca-toco de Paulo Maluf na saúde do município e São Paulo. Lágrimas de crocodilo também não farão com que os mortos se levantem.

Pior ainda, jornalistas contribuem para a barbarização do debate público. Basta constatar o papel de correia de transmissão a que se sujeitam na crucificação do funcionalismo público. A alta inquisição tucana nem precisa invocar a maldição -corporativistas!_, pois o baixo clero dos comentaristas políticos já se encarrega de fazê-lo.

Tudo bem, cada um tem direito a sua opinião. Mas é função da imprensa enfiar cunhas nessas unanimidades que vez por outra promove _sempre burras, como queria Nélson Rodrigues. Como usuário de serviços, não tenho simpatia por servidores públicos, mas causa engulhos ver tantos disseminarem a simplificação de que são todos ''privilegiados''.

Veja o quadro ''Salários médios do funcionalismo'', publicado na Folha há quatro dias e reproduzido acima. Com exceção da Receita Federal, são vencimentos medíocres, quando não de fome. Não sei se é tão absurdo pleitear aumento de 46,19%, nesses casos.

O governo pode até desconsiderar que pessoas reais têm de viver com esses salários. Os jornais, não. O mínimo que deveriam fazer é mostrar quem são esses servidores, como vivem e o que pensam, por exemplo, da falência do Estado.

É um bocado de gente, mais de meio milhão de pessoas. Parece pouco provável que sejam todos chupins, picaretas e incompetentes, como quer fazer crer a propaganda dos reformistas ''enragés''.

''Malufolha''

Em São Paulo, a eficiência quase fascista da máquina de comunicação de Paulo Maluf está ganhando a guerra. O maior sucesso da implantação a ferro e fogo do Plano de Atendimento à Saúde (PAS) é o predomínio da versão de que o sistema de atendimento faliu por culpa dos próprios funcionários (''vagabundos'', como diz o prefeito).

A pesquisa Datafolha sobre o PAS publicada esta semana revelou um dado importante: a grande maioria dos usuários aprova o novo esquema. Mas é pouco, e está sendo entendida por alguns leitores como uma adesão da Folha ao PAS. Um deles afirmou que o jornal estava se transformando em ''Malufolha''.

O que jornalistas precisam ter em mente é que há uma terceira parte envolvida, cujos interesses lhe toca representar: a coletividade. É em nome dela que têm de questionar o prefeito e sua clique sobre as consequências futuras do arrastão, mostrar o autoritarismo dos métodos, e não apenas registrar a eficiência que muitas vozes abalizadas consideram efêmera e localizada.

Minhocão liberado

A leitura de alguns textos da Folha sobre as polêmicas iniciativas de Maluf realmente desanima. Esta semana o prefeito saiu-se com um teste de ruído para justificar a reabertura da via elevada conhecida como Minhocão, sua grande no sentido físico obra.

A abertura ou ''lide'' da reportagem ''Prefeitura estuda murar o Minhocão'', na edição de quinta-feira, nem sequer mencionava o resultado das medições: ''A Prefeitura de São Paulo estuda transformar o elevado Costa e Silva, no centro da cidade, em uma espécie de túnel a céu aberto, com muros de dois metros de altura''. Abaixo do título, um desenho mostrava os valores medidos, mas sem interpretação alguma.

Compare agora com o lide do texto ''Teste no Minhocão refuta teses de Maluf'', no concorrente ''O Estado de S.Paulo'':

''Os números não estão ajudando o prefeito Paulo Maluf na sua empreitada para reabrir o Minhocão durante a noite. Será mesmo muito difícil justificar a medida tomando como base os dados da medição de ruído realizada ontem pelos técnicos da Secretaria de Vias Públicas. O teste acústico serviu apenas para provar o óbvio: com o Elevado Costa e Silva interditado, o nível de barulho na região fica bem mais suportável, ainda que continue acima dos padrões recomendados''.

Muitos jornalistas condenarão o texto do ''Estado'', argumentando que peca pela ''editorialização''. É o preço a pagar pela coragem de tirar conclusões, correr riscos.


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