Folha de S. Paulo


Tucanos versus corvos

A revista "Isto É" está de parabéns pelo furo das fitas do Sivam. Prestou um serviço ao país, e à própria imprensa. Sua reportagem de capa obrigou o conjunto dos órgãos de comunicação a se afastar mais um pouco da ficção de que tudo no governo FHC é charme e modernidade. Acuado, o sociólogo tornado príncipe mostrou que sabe ser truculento e arcaico, se necessário.

Fernando Henrique poderia ter saído razoavelmente prestigiado do episódio, descontados os estragos incontornáveis para sua imagem. Esta poderia até beneficiar-se da sucessão rápida de duas demissões, primeiro do chefe do cerimonial do Planalto, Júlio César Gomes dos Santos, e depois do ministro da Aeronáutica, Mauro Gandra.

Mais que a fragilidade da segurança presidencial, ficaria gravado nas memórias o gesto enérgico do soberano que não tolera dubiedade nos subordinados. A única dificuldade seria explicar por que demorou uma semana para forçar a saída e só o fez quando era iminente a publicação das conversas.

Não contente em controlar os danos, o presidente decidiu partir para o ataque. Ao fazê-lo, deixou claro que no momento não só lhe falta fortuna (sorte) mas também virtude (habilidade) _duas carências perigosas para governantes, como ensinou Maquiavel. FHC acusou os críticos da concorrência para o Sistema de Vigilância da Amazônia, chamando-os de corvos.

E lançou-se a uma arriscada defesa "a priori" do Sivam, talvez para aplacar o descontentamento da cúpula aeronáutica, mentora do sistema, que ensaiou reações militares de má memória.

Na sua invectiva, FHC usou em primeiro lugar de truculência. Tentou calar no berro comedores de carniça! aqueles que se incomodaram com o mau cheiro proveniente do próprio palácio e começaram a investigá-lo.

Talvez não queira ou não possa apresentar fatos e argumentos contra a podridão manifesta das conversas de outro embaixador em palácio (desta vez sem parabólica). Neste caso, deveria ter poupado a opinião pública da tentativa desastrada de ocultação de cadáver, apesar da referência encantadora a Edgar Allan Poe.

De moderna, sua atitude em relação à imprensa não tem nada. Essa alergia ao ar fresco da publicidade é tão antiga quanto o próprio governo. Para combatê-la, as democracias contemporâneas contam com o antídoto da liberdade de informação.

Ciúme e dinheiro

Se a imprensa está cumprindo seu papel de investigar, isso não quer dizer que o faça satisfatoriamente. Depois da bomba da "Isto É", pouco avançou na apuração do processo que pôs o contrato de US$ 1,4 bilhão nas mãos da empresa norte-americana Raytheon.

Não se pode esquecer que o processo de escolha andou envolto em suspeitas por duas vezes, já. Primeiro, a companhia francesa Thomson foi acusada de subornar autoridades. Depois foi a vez da brasileira Esca, afastada do gerenciamento do sistema por fraudes contra a Previdência Social.

É tido como certo que a espionagem industrial come solta. Afinal, o negócio é apontado como o segundo maior contrato em andamento no mundo e já mobilizou até o presidente norte-americano, Bill Clinton.

Apesar disso, tudo que jornalistas brasileiros conseguiram levantar, uma semana depois da divulgação das conversas, foi uma intriga palaciana: a escuta telefônica teria sido encomendada e/ou vazada no interesse de Chico Graziano, o recém-indicado presidente do Incra, antes secretário particular de FHC. A hipótese foi reforçada com a revelação, quinta-feira, de que o presidente recebeu de Graziano, no dia 9, a primeira transcrição das gravações.

Nesse enredo, Graziano e o embaixador arapongado seriam antigos desafetos, desde a campanha eleitoral.

Suposto motivo da disputa: controle sobre a agenda do candidato e depois presidente.

Pode até ser, mas é difícil de aceitar que essa fogueirinha de vaidades tenha detonado o petardo nuclear da semana passada. Não com tanto dinheiro em jogo. Pior, o tititi interminável sobre quem grampeou, quem não grampeou, acaba por tirar a atenção do que mais interessa _o conteúdo grampeado.

Brincadeiras à parte

A figura central que emerge das ligações perigosas de Júlio César Gomes dos Santos é o senador Gilberto Miranda (PMDB-AM). A pergunta sobre a possibilidade de suborná-lo pode até ter sido jocosa, como aventou o embaixador em sua empolada defesa (cuja íntegra foi publicada pela Folha na quarta-feira), mas a própria brincadeira demonstra que homens públicos brasileiros consideram normal a referência às propinas _desde que não estejam gravando, claro. Gilberto Miranda, relator do caso Sivam, propôs esta semana que o Senado não aprove os financiamentos do Sivam. O Planalto se apressou em alardear estranhamento com a suposta mudança de posição do senador.

Este respondeu exibindo uma carta de julho ao presidente, de mesmo teor. Miranda resolveu também propagandear as virtudes de sistemas concorrentes (WAAS e OTH), que teria conhecido em viagem à Europa e à Rússia custeada por ele próprio, afirma _uma desconcertante demonstração de patriotismo, sem dúvida. A Secretaria de Assuntos Estratégicos negou que os sistemas representem uma alternativa tecnológica real.
Além do leva-e-traz, os jornais trataram do senador com alusões a seu enriquecimento rápido na Zona Franca de Manaus. Mesmo assim, em tom de folclore, como fazem sempre quando entra em cena o senador Eduardo Suplicy (PT-SP).

Outra grande ausente do noticiário é a empresa Thomson, desbancada pela Raytheon. Salvo engano, a Folha foi o único jornal a procurá-la, tendo publicado na sexta-feira que a empresa não só se recusa a pronunciar-se sobre o tema como ainda ameaça processar quem vinculá-la ao episódio da revelação do grampo.

Em resumo, a história do grampo do Sivam está muito mal contada. Pelo governo, antes de mais nada, mas também pela imprensa. Neste caso, parece ser menos uma questão de princípios do que de competência, mesmo.


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