Folha de S. Paulo


História malcontada

A imprensa tem sido assaltada pelo Unabomber, Bráulios e Edir Macedo. Peço licença, porém, para trazer à baila um certo sr. Jorge Díaz Arreteagui, peruano, personagem do fato de imprensa mais grave dos últimos dias.
Nunca ouviu falar? Pois deveria. Salvo melhor juízo, é o único nome que veio à tona na fantástica e efêmera historinha iniciada segunda-feira pelo diário financeiro paulista "Gazeta Mercantil": guerrilheiros do sanguinário Sendero Luminoso estariam treinando brasileiros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Não bastava a violência associada com esses invasores de propriedade (atenção, politicamente corretos, não há termo melhor para descrever sua ação), ou contra eles praticada.

Não bastava a carnificina de Corumbiara, mais uma a pesar inutilmente na consciência nacional (Matupá, Carandiru, Candelária, Vigário Geral, Nova Brasília). Não, tinha de haver também terroristas na parada.

A imprensa embarcou confortavelmente na história, sabor anos 60 ou 70. Ninguém pareceu muito preocupado com a possibilidade de que a conversa funcionasse como justificativa a posteriori para Corumbiara, sub-reptícia e abjeta. Uma espécie de contrafato, capaz de ofuscar o que o massacre berrava a todos: ausência completa de iniciativa governamental na grave questão fundiária.

No dia 18, título destacado na primeira página da "Gazeta" informava: "Governo investiga Sem Terra". A linha-fina (subtítulo) explicava: "Agentes de informações dizem que MST tem infiltração do Sendero", informação atribuída a "dois ministros de Estado". Fontes de primeira linha, portanto.

Algo de tamanha gravidade articulação terrorista internacional para sublevar o campo tem interesse noticioso evidente. Não pode deixar de ser publicado, depois de conhecido, mas pede a mobilização dos melhores recursos jornalísticos para apuração criteriosa dos fatos. Não foi o que aconteceu.

A longa reportagem da "Gazeta'' (cerca de 110 cm/coluna) era só formalmente correta. Várias fontes foram ouvidas e as informações, cruzadas. O outro lado, constituído pelo próprio MST, teve voz. Mas o texto desconfiava pouco, quase nada.

O máximo de questionamento que se permitiu estava no seguinte período, que deveria entrar para a história negativa do jornalismo: "As fontes governistas insistem em que não estão equivocadas, mas não mostram provas ou indícios da presença senderista entre os sem-terra".

Em outras palavras, é lícito de ora em diante acusar sem provas. E a verossimilhança que se dane. Pois não há outra conclusão a tirar dos risíveis pontos de contato MST/Sendero alinhavados no texto:

A tática do Sendero absorvida pelos sem-terra é maoísta;

As bases de organização;

Lideranças de alto nível intelectual;

Exacerbação do sentimento nacionalista;

Aliança com partidos, Igreja e entidades legais;

Emprego de armas improvisadas, como enxadas, panelas, picaretas.

A "Gazeta" ainda teve o mérito de descobrir a lenda, que seguramente circula nos gabinetes brasilienses (há de tudo, por lá). Pior fizeram os outros jornais, que pegaram o bonde andando. Poderiam ter tirado a história a limpo, mas prosseguiram no mesmo tom crédulo, conservador e alarmista.

O primeiro a sair atrasado, na praça paulista, foi "O Estado de S.Paulo". Neste caso, a origem da informação era claramente identificada: "Militares exigem ação no campo", dizia o título na capa de terça-feira. E a investigação noticiada na "Gazeta surgia já como fato acabado: "Militares pediram ao governo brasileiro urgência para tratar da reforma agrária por causa da presença de militantes do grupo peruano Sendero Luminoso no Movimento dos Sem-Terra".

Mais atrás veio a Folha, na quarta-feira. Sem registro na primeira página, mas com destaque na de número 1-11: "Elo sem-terra-Sendero é de 91, diz Exército".

Documentos confidenciais, segundo a reportagem da Sucursal de Brasília, davam conta de que a vinculação fora detectada naquele ano pelo adido militar na embaixada brasileira em Lima. O restante do texto pouco acrescentava às informações de dois dias antes, no furo da "Gazeta" (que não foi citada, como tem acontecido na Folha, contrariando seu próprio "Manual da Redação").

O nome do adido militar nem sequer foi mencionado, informação que suponho de domínio público. E olhe que adidos militares nem sempre gozam da credibilidade desejável, como sugere escândalo recente envolvendo um acusado de tortura.

Nomes, aliás, são a maior carência dessas reportagens estranhas. Só na quinta-feira foi aparecer um, de novo na "Gazeta" (pág. A-7). Isso, Jorge Díaz Arreteagui, aquele lá do primeiro parágrafo: um fulano preso há mais de dois meses em Fortaleza, sob a acusação de estelionato, depois de tentar aplicar um golpe no arcebispado.

Segundo a Polícia Federal, "apesar de se dizer ex-guerrilheiro senderista, Arreteagui não tinha qualquer vínculo com os sem-terra e estava na capital de um Estado que não tem propriamente conflitos de propriedades rurais".
Foi tudo que restou da lenda de senderistas sanguinários ensinando matutos a brandir enxadas, panelas e picaretas. O assunto foi convenientemente abandonado pelos jornais. Sangue, de verdade, rolou foi em Corumbiara, o de uma dúzia de brasileiros. Sem nome.

Mais um ano

Quarta-feira, 27, é o último dia de meu primeiro mandato de um ano como ombudsman. Já está decidido que será renovado por mais um ano, como previsto no regulamento da função. Você deve encontrar nesta edição uma reportagem dando conta disso.

O balanço do ano, propriamente dito, fica para a semana que vem. Até lá, contarei com séries completas de estatísticas, que permitirão uma análise mais acurada desses 365 dias de ombudsmanato.

Por ora, fique somente o registro de que encaro a revalidação desse contrato "sui generis" com uma mistura de satisfação e insatisfação. Satisfação, antes de mais nada, porque acredito que a função vem sendo exercida a contento, em face das condições dadas. Insatisfação, contudo, porque Redação e ombudsman ainda têm muito, mas muito chão para andar.

Juntos, ainda que separados, como até agora.


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