Folha de S. Paulo


Falsidade ideológica

O Prêmio Folha de Jornalismo de 1994, categoria reportagem, foi dado ao trabalho "Mercado paralelo de bônus eleitorais", de Xico Sá e Vicente Duarte. A investigação dos jornalistas da editoria de Política da Folha provocou a renúncia do candidato do Partido Liberal à Presidência da República, Flávio Rocha.

Estou convencido de que Sá e Duarte prestaram um serviço ao público e à civilização dos costumes políticos.

Para os elevados padrões éticos de alguns jornalistas e pesquisadores, no entanto, tal trabalho jamais deveria ter sido realizado. A razão é que os dois repórteres, para comprovar a fraude com bônus eleitorais, recorreram a identidades falsas.

Em abstrato, é fácil condenar esse recurso de investigação. Foi o que fez, implicitamente, o pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, no qual militava há bem pouco a primeira-dama Ruth Cardoso) Adalberto M. Cardoso, secundado pela revista "Imprensa", sempre pronta ao papel de (má) consciência da categoria dos jornalistas, em reportagem de capa da edição de janeiro.

É preciso ser justo: Cardoso não condenou esta prática em particular, mas a inclinação de jornalistas brasileiros a aceitarem meios eticamente duvidosos para obter informações. Ele enviou 1.112 questionários sobre inúmeros temas a redações de grandes jornais e revistas, colhendo 355 respostas (inclusive a minha).

Entre outras questões espinhosas, os entrevistados deveriam dizer se "pode ser justificável" apresentar-se como outra pessoa para obter informações.

Fui um dos 63,1% que responderam "sim" à demanda. Isto não faz de mim e de tantos outros umas feras liberticidas. Meu raciocínio: se pudesse imaginar um único caso, a resposta afirmativa seria cabível. A reportagem premiada sobre os bônus é apenas um exemplo concreto das muitas situações em que a falsa identidade seria a única forma de obter informações de interesse público.

O exemplo ilustra de modo eloquente algo que repito à exaustão em palestras e entrevistas: é quase impossível discutir abstratamente a ética do jornalismo. Cada caso é um caso. As circunstâncias de uma reportagem quase sempre assumem relevância considerável para esse tipo de avaliação.

No caso dos bônus do PL, é crucial tomar em consideração que a falsa identidade não foi usada contra um particular. Em jogo estava a apuração de uma denúncia contra entidades da esfera pública, um partido político e um candidato ao posto máximo do Poder Executivo. É algo muito diferente de telefonar para a casa de um político e omitir a condição de jornalista, por exemplo.

Outro: é justificável examinar latas de lixo em busca de informações? Depende. Se for o lixo da casa de Fernando Henrique Cardoso, sou radicalmente contra. Se for o de seu comitê de campanha, sou a favor (isto caso o jornalista se preste voluntariamente a esse trabalho degradante).

A rigor, não discordo das conclusões gerais do estudo de Adalberto Cardoso. Não tenho muitas dúvidas de que é bem baixo o padrão ético da massa de jornalistas brasileiros, ainda que busquem no céu das boas intenções e dos princípios a justificação para o lamaçal de vaidades e favores em que desenvolvem seu ofício miúdo de leva-e-traz. Como conclui o pesquisador do Cebrap, com palavras bem mais brandas e ao mesmo tempo mais obscuras:

"(...) parecem falar mais alto valores relativos à liberdade de acesso e divulgação de informação do que direitos democráticos. Noutras palavras, a liberdade de informação, enquanto fim inquestionável numa sociedade democrática, pode valer-se de meios que, no limite, arranham aspectos importantes da institucionalidade democrática relativos a direitos à privacidade de indivíduos e coletividades. Não vejo como deixar de nomear este padrão de relação entre valores de operacionalização pragmática dos meios. Numa palavra, a notícia a qualquer custo."

Repito que, em tal plano de generalidade, não discordo dessa caracterização tão desairosa para os jornalistas.

O problema é que, exatamente por ser abstrata, esse gênero de (auto)crítica em nada auxilia profissionais a tomarem decisões concretas, na hora do vamos-ver.

O debate sobre os limites da ação da imprensa é fundamental, desde que não fique no nível das platitudes. E não se deve perder de vista o previsível efeito colateral da panacéia-ladainha sobre privacidade e direitos individuais: a domesticação da imprensa, que sempre foi o objetivo de qualquer ocupante do poder.


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