Folha de S. Paulo


Um caso exemplar

A reportagem que originou a manchete de domingo passado -"BC apura suspeita de evasão fiscal"- é exemplar, sob todos os aspectos. Do atacado ao varejo, das alturas em que pairam boas intenções aos detalhes em que se insinuam demônios.

Acima de tudo, é um exemplo de bom jornalismo. Josias de Souza e Liliana Lavoratti, da Sucursal de Brasília, tiveram acesso a um documento do Banco Central revelando que 136 empresas multinacionais remetem pouco ou nenhum lucro a suas matrizes. A suspeita é a de que isso acoberte evasão fiscal e remessa irregular de divisas para o exterior.

A prática tem longa tradição, é um segredo de polichinelo. Talvez até os integrantes da sagrada "equipe econômica", trabalhando no setor privado, já tenham recorrido a ela. O mérito do trabalho foi revelar um documento oficial sobre as irregularidades.

A sequência dada à reportagem nas edições seguintes da Folha mostra que ela ensejou também um exemplo da incapacidade da imprensa para avançar de maneira independente com suas investigações. Na quarta-feira, depois de o mesmo BC ter anunciado que preparava projeto de lei para salvar a pátria, digo, para coibir as remessas irregulares, o assunto já tinha morrido para o jornal.

Ou seja, depois de cumprida a função de constranger alguns pesos-pesados com a divulgação de seus nomes (entre eles grandes anunciantes do jornal), a fonte de informações secou. Nenhum caso concreto de superfaturamento foi documentado pela Folha.

Apesar da indignação fácil que desataram, é improvável que as imoralidades do passado sejam sequer apuradas, para não dizer punidas. Se tudo resultar em alguma restrição da prática irregular, no futuro, já será lucro.

Outra virtude perversa da reportagem é exemplificar a comunidade de interesses que muitas vezes aproxima fontes governamentais e jornalistas. Se o documento "vazou", como se diz no jargão, é porque alguém tinha interesse em permitir que vazasse.

Noves fora, não é o país ou o leitor que saem ganhando, imediatamente, mas o jornal, com seu furo, e o BC.

Este aparece para a opinião pública como determinado a acabar com um absurdo mais velho do que andar pra frente. Sem uma medida real de enfrentamento. Sem mover uma palha.

Por fim, a reportagem de domingo é ainda um exemplo de descuido com detalhes. Na crítica interna da edição que redigi na segunda-feira, apontei dois:

1. A legenda "em milhões de dólares", na coluna "Capital registrado" do quadro publicado à pág. 1-8. Como os valores relacionados estavam todos na casa das dezenas e centenas de milhares, os capitais seriam da ordem de bilhões de dólares -erro evidente. Foi corrigido terça na seção Erramos.

2. O nebuloso exemplo dado no terceiro parágrafo do texto "Veja o que são os preços de transferência":

"Uma empresa no Brasil resolve repatriar US$ 10 milhões para sua matriz ou coligada no exterior. Para burlar a legislação, a empresa exporta por US$ 15 mil um produto que, normalmente, custaria apenas US$ 5 mil".

Na minha vasta ignorância econômica, fiquei com a impressão de que -na melhor das hipóteses- havia alguma coisa mal-explicada, ali. Na pior delas, tratava-se de um erro, e o correto seria falar em importação; ou, então, os preços é que estavam invertidos.

Expus a dúvida na crítica interna da edição. Foi o início de uma longa e complicada novela, que só termina hoje, com a publicação de um Erramos (na pág. 1-2).

Recebi inicialmente a seguinte resposta da editoria (seção) de Economia, que mais confundiu do que explicou: "(...) sua observação sobre a matéria (...) está incorreta. Para que uma empresa remeta mais divisas do que tem direito é preciso que o comprador no exterior fature mais do que vale o produto. Logo o vendedor brasileiro precisa colocar em seu preço um sobrepreço (...) e não o fature por um preço menor ao do mercado."

Continuei na mesma. Insisti e recebi nova resposta da editoria reafirmando que não teria havido erro. A Secretaria de Redação recorreu então aos próprios autores da reportagem e a um economista, que deram razão ao ombudsman.

Por falar em meandros lógico-matemáticos, gostaria de registrar duas reações de leitores à minha coluna de 1º de janeiro, "Afogando em números". (Recebi muitas, boa parte delas afirmando que eu errara ao dizer que 2000 será bissexto, mas reconfirmei que terá mesmo um 29 de fevereiro.) J. Roberto Whitaker Penteado, vice-presidente da Escola Superior de Propaganda e Marketing, mandou um bilhete simpático:

"Estão errados você e o editor de 'Teens' (na verdade, Folhateen). 657 é 10,27 vezes 64. Não é '9,26 vezes', como ele argumenta, mas também não é 'quase 11', como você escreveu. Matematicamente, só as frações a partir de 10,51 seriam 'quase 11'.

"A matemática tem um aspecto muito simpático, neste mundo incerto. É que se trata de uma área de conhecimento quase exato..."

A outra contribuição veio de um leitor que pediu para não ser identificado. Economista, ele implicou com a expressão "oito vezes menor", que empreguei semana passada para comparar o mapa que saiu na errata do Atlas Folha com o original da pág. 32.

Para esse magnífico defensor da Exatidão, haveria na locução tanta impropriedade quanto nos percentuais de decréscimo superiores a 100% que eu desancara na coluna de 1º de janeiro. Seu argumento é o de que algo só pode ser no máximo uma vez menor do que aquilo com que é comparado.

Retruquei que qualquer pessoa entendia o que eu quisera dizer, que oito vezes menor era o mesmo que 1/8.

Ele contra-argumentou que, se algo pode ser oito vezes menor, poderia também ser sete, seis, cinco, quatro, três, duas e... uma vez menor. O xeque-mate: "Quanto é uma vez menor?"

Pelo meu raciocínio, seria 1/1. Ou seja, de tamanho igual -o que evidentemente não faz sentido. Por via das dúvidas (literalmente), agora só vou escrever 1/8.


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