Folha de S. Paulo


Urubus

A morte do grande Tom Jobim deu margem a um acontecimento constrangedor: a disputa por seu "cadáver" jornalístico entre os jornais "O Estado de S. Paulo" e "O Globo", materializado em míticas "últimas entrevistas".
"O Globo" foi o mais cabotino na exploração dessa improvável clarividência (o bom senso diz que só por acaso, não por mérito próprio, um jornal teria a última entrevista do morto ilustre).

Em sua primeira página, o diário fluminense trazia uma fotografia de Jobim no Leblon, batida em 18 de novembro, que a legenda apontava como "a última". Em realidade, há uma imagem bem mais recente, do último dia 3, registrada em Nova York pelo fotógrafo Alcir N. Silva para a revista "Caras" e publicada pela Folha, anteontem.

Na capa de seu "Segundo Caderno", "O Globo" apresentava um pequeno box (quadro) com o título "Na última entrevista, um manifesto". Tratava-se da reciclagem, em esquálidas 40 linhas, de reportagem na capa do mesmo caderno no último sábado.

Detalhe: não era uma reportagem sobre Tom Jobim, mas sim sobre um determinado quarteirão do bairro carioca do Leblon. O músico era um dos personagens do texto. Ou seja, este não configurava sequer uma entrevista no sentido forte do termo, com perguntas e respostas.

Nada a estranhar para um jornal que apostou todas as suas fichas na sensação fácil. "O Globo" escolheu para manchete uma hipótese plausível, mas da qual não parecia muito seguro (tanto que se resguardou no cuidadoso verbo "poder"): "Tom pode ter sido vítima de erro médico".

No "Estado", o problema parece ter sido mais de precipitação. A entrevista feita por Enor Paiano era uma entrevista de verdade. O próprio texto se encarregava de esclarecer que no mesmo dia de sua realização, 30 de novembro, Jobim havia concedido outra, à revista de música "Qualis". Mas o título arriscava, imprudente: "A última entrevista".

A Folha também teve a sua entrevista, que preferiu qualificar como "uma das últimas" (depois de fazer algo de trivial em jornalismo: checagem). Era uma reportagem de Marisa Adán Gil destinada à capa da Revista da Folha do próximo domingo, reproduzida exatamente como seria publicada (na forma de texto corrido). À parte, em perguntas e respostas, os trechos que não seriam aproveitados pela revista.

Vou ser obrigado a desagradar aqueles que não querem ver o ombudsman elogiando a Folha. Neste caso da entrevista -melhor dizendo, do caderno inteiro que dedicou a Tom Jobim- o jornal se saiu bem melhor que os outros.

A generosidade estético-ecológica de Tom Jobim não excluía nem o urubu. Ele teve até um disco com o nome desse bicho repugnante capaz de voar com majestade. Na falsa "última entrevista" do "Globo", Cláudio Uchôa conta que, no meio da conversa sobre seu último disco, Jobim de repente começa a falar de urubus, depois de olhar para o Corcovado.

No caderno especial da Folha, um texto de Arnaldo Jabor cita mais um devaneio etológico (etologia é a ciência do comportamento) do compositor: "Você sabe, Jabor, que o urubu-caçador dorme na perna do vento..." Comentário do jornalista-cineasta:

"E aí você sentia que não era apenas um homem que contemplava o mundo. No limite fino entre nós e a natureza ele nos olhava mais do outro lado, de dentro da floresta, o que lhe dava uma voz de bicho, sua respiração pesada nos pianos, entre as palavras das músicas."

Mal sabia Tom Jobim que, depois de morto, ainda teria de enfrentar o grande predador da dignidade alheia que é o homem. O urubu-caçador.

O leitor deve encontrar nesta edição uma reportagem narrando seminário interno da Folha, na última terça-feira, sobre o lamentável caso da Escola Base. Trata-se de um escândalo dos meios de comunicação, em abril deste ano, sobre suposto abuso sexual contra crianças que destruiu as vidas dos proprietários da escola sem qualquer prova cabal.

Voltarei ao assunto. De pronto, quero cumprimentar o jornal por tomar tal iniciativa. E apontar que já na edição de quarta-feira alguns efeitos da discussão se faziam sentir: ao narrar o caso do possível envolvimento de mulher e filha no assassinato de um comerciante de São Bernardo do Campo, em nenhum momento o jornal trombeteou em títulos essa nebulosa participação.

Não custa nada fazer a coisa certa. O que custa mesmo é desfazer o errado.

Para não dizer que não falei dos fascículos (e já que muitos dos leitores só querem falar disso com o ombudsman): a Folha de domingo vai custar 50% a mais nas bancas quando começar a sair a coleção "Conhecer por Dentro". Repare bem nos últimos anúncios, aqueles que dizem para entrar de gaiato no navio. Está dito lá que o jornal vai custar R$ 1,50.

Outra notícia ruim, desta vez para o assinante da Grande São Paulo, que deveria receber hoje a capa dura e os primeiros fascículos de "500 Receitas": espere até a semana que vem, porque houve atrasos na gráfica do Chile e o que se conseguiu imprimir vai ser destinado só às bancas.

Para que não pairem dúvidas sobre as intenções do ombudsman ao martelar esse tema, esclareço que sou adepto dos fascículos. Eles são uma grande idéia para aumentar a venda e o conteúdo didático dos jornais, algo bem melhor do que sortear apartamentos e carros. Se me lanço a criticar aspectos operacionais da empreitada em que se meteu a Folha, é para defender essa idéia e contribuir para evitar que ela se associe primordialmente com transtornos, na cabeça dos leitores.

Ao contrário do que muita gente acredita, ombudsman também erra -e como. Na semana passada, comentei um problema de regência e de ambiguidade na manchete "Exército pede ajuda para a Igreja" e acabei cometendo um erro bobo, desses que não se justificam.

Ao explicar o que é regência, simplesmente troquei os verbos. Em lugar de me referir a "pedir", escrevi "ajudar". Muitos dirão: é um detalhe. Mas eu mesmo escrevi aqui que o demônio se esconde nos detalhes.

Quem me chamou a atenção foi o diretor do semanário "O Pergaminho", Manoel Gandra Fonseca. (Espanta-me que tenha sido o único a fazê-lo.) Seu jornal de 2.000 exemplares circula no centro-oeste de Minas Gerais e tem sede em Formiga, uma cidade de 75.000 habitantes.

Além de ler a Folha e este ombudsman com minúcia, como se viu, Gandra encontrou alguém para fazer o mesmo com o seu jornal. Isto mesmo, "O Pergaminho" também tem seu ombudsman: Georges Khouri, psicólogo, há dois meses no cargo.

Desejo a Khouri que ele seja tão rigoroso e implacável com seu jornal quanto Fonseca foi comigo.

Para muitos leitores que me ligam para se queixar de certas construções, reservo uma resposta que acredito profundamente desanimadora: são causas perdidas.

Não tenho mais esperança, por exemplo, de que o verbo iniciar deixe de ser abusivamente empregado como intransitivo, como em títulos do tipo "Inicia hoje a exposição tal".

Afinal, como convencer um redator aflito com o horário de fechamento de que ele não está no direito de trocar as letras espaçosas de "começar" pelo anoréxico "iniciar", que tem nada menos do que três esbeltos "ii"?

Outro caso sem futuro é o do advérbio "independentemente". Chega a ser escandalosa essa quantidade de "ee" e "nn", mas não se pode ir contra a natureza da língua. Muitos, no entanto, acreditam-se autorizados a isso, e trocam-no com a maior sem-cerimônia pelo adjetivo correspondente, "independente".

Um exemplo entre tantos: "A medida será tomada independente da Infraero, estatal responsável pela administração dos aeroportos" (pág. 2-3 da Folha de 26 de novembro). Não é a medida que goza da qualidade da independência, mas a ação futura de tomá-la que, conforme o texto prevê, se dará de modo independente. Ou seja, independentemente.

Independentemente do ombudsman da Folha, porém, o termo cairá em desuso.

"Três mulheres são mortas com tiro na cabeça": o que você entende deste título, publicado na pág. 3-7 da Folha de 16 de novembro? Jornalista há 15 anos, deduzi o que acho que o redator quis dizer, que cada uma das vítimas recebeu um só tiro no crânio (ou seja, três disparos ao todo).

Houve porém quem compreendesse que foram três assassinatos e uma bala solitária. Entre eles, o leitor J.M. Kornbluh, que enviou fax ao ombudsman para comentar o título estranho. "Fiquei admiradíssimo com o que eu estava lendo: a habilidade extraordinária do assassino, que com um único tiro matara as três coitadas. Certifiquei-me de que quatro conhecidos meus leram a manchete como eu a tinha lido", escreveu.

Ironias à parte, inabilidade foi a do redator, que com um único título desinformou cinco pessoas. Pelo menos.


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