Folha de S. Paulo


O efeito Gutenberg

Um leitor qualificado e perspicaz sugeriu-me outro dia uma pergunta difícil: como se comportará a Folha em relação ao governo Fernando Henrique Cardoso? No maniqueísmo inerente ao jornalismo, só haveria uma alternativa: ou amor ou ódio.

A questão é pertinente, dada a notória proximidade do jornal com o presidente eleito. Até setembro de 1992, FHC mantinha uma coluna semanal na pág. 1-2, publicada às quintas-feiras. Tal relação de colaboração só foi interrompida porque o senador peessedebista se tornou chanceler de Itamar Franco.

(Segundo praxe da Folha, um colunista não pode simultaneamente ocupar ou candidatar-se a cargo no Executivo. Nesta condição, sua coluna correria o risco de transformar-se em tribuna para defesa de um interesse privado -a reputação como governante.)

Fernando Henrique não foi o único tucano a ocupar esse espaço, conhecido na Redação como coluna vertical. Depois de amanhã deverá ser publicado o último texto do futuro ministro do Planejamento José Serra.
Pertinente, a questão não é porém nova. O próprio retrospecto das colunas de ombudsman aponta para uma simpatia espúria:

Durante a campanha eleitoral, minha antecessora apontou fernandohenriquismo do jornal;

Ao estrear, emiti a opinião de que este e outros diários tinham mesmo henricado;

A 30 de outubro, na coluna Lua-de-mel na Europa, critiquei a condescendência da Folha com o presidente eleito.

Quando FHC enfim se lançou ao primeiro ato de governo, montar seu ministério, temi pelo pior.

No episódio da escolha de Pedro Malan para ministro da Fazenda, intencionalmente vazada para repórteres, os jornais evidenciaram sua tibieza. Com arrogância, FHC desqualificou as manchetes de 1º de dezembro, dizendo que era um ministério Gutenberg (referência a Johannes Gutenberg, que inventou a imprensa de tipos móveis no século 15).

Ficou por isso mesmo. Em outras épocas, a Folha teria posto a boca no trombone, denunciando a tentativa de manipulação.

FHC seguiu a seu modo a receita do seu sucessor na Fazenda, aquele premiado com a embaixada em Roma pela ajuda ao candidato: esconder o que é ruim (as pressões para indicar Serra no lugar de Malan) e faturar o que é bom (a imagem favorável de Malan).

No último dia 14, perguntei em minha crítica interna da edição -documento distribuído diariamente na Redação- se o termo loteamento também não se aplicaria às negociações em curso, em especial as tratativas com o fisiológico PMDB. Afinal, eram um tanto semelhantes às entabuladas por Itamar dois anos antes e desancadas pelo jornal.

Dois dias depois, uma chamada na capa do jornal anunciava: FHC cede a pressão e loteia ministério. Ao elogiar a iniciativa crítica, no entanto, fiz uma ressalva:

"Faltou mencionar um ponto importante, na análise das 'pressões': FHC teria condições, sem contemplar PMDB, de fazer a reforma constitucional (ou pelo menos fiscal) exigida por todos, inclusive esta Folha?

É uma espécie de outro lado -neste caso, da questão. A necessidade de criticar o emprego de métodos políticos atrasados, como a distribuição de cargos, não desobriga de outra, a de eventualmente reconhecer que pode não haver outra moeda no mercado para negociar a estabilidade.

A palavra-chave do comportamento que a Folha deve observar frente ao governo -qualquer governo- é equilíbrio. Sem simpatia nem rancor.

O perigo das relações estremecidas, como no caso FHC-Folha, são as hiper-reações resultantes de encontrões fortuitos.

Foi o que sucedeu com o sociólogo Luciano Martins, amigo de FHC e organizador de um convescote acadêmico em Brasília. Na véspera do seminário, ele tinha dado entrevista à Folha e falado da crise do Estado-Nação, publicada sob título Acabou o Estado nacional, diz tucano.

Era um exagero, mas confesso que nem me chamou a atenção. Por vaidade, ou cioso das diferenciações que matizam o pensamento, seu ofício, Martins chiou.

Em carta ao Painel do Leitor, expôs suas divergências e levou troco imediato, na forma de uma atordoante Nota da Redação:

"Por serem resumos extremamente condensados, os títulos jornalísticos quase nunca comportam filigranas como esta que tanto preocupa o missivista. Para Luciano Martins, o conceito de Estado nacional não acabou, mas está em crise. E daí? A imprensa deve melhorar seus títulos, não há dúvida. Mas os intelectuais agora transformados em aprendizes de políticos ajudariam muito se começassem a falar de maneira categórica ou, pelo menos, clara."

O reflexo desse destempero pôde ser visto pelo público no próprio Painel do Leitor, 11 dias depois: quatro cartas de protesto, nenhuma de apoio ao jornal, nenhuma nova nota justificando ou se desculpando pela anterior.

Os leitores estão certos. Se o jornal acha que intelectuais não têm nada de importante ou compreensível para dizer, não deveria insistir em entrevistá-los. Se entrevista, tem de cobrar clareza durante a conversa; depois, só lhe resta ser fiel ao que dizem.

Atritos como esse são exceção. No geral, a relação entre tucanos e repórteres é afável. Sua melhor expressão é o "off", um acordo entre fonte e jornalista para manter a primeira no anonimato.

Na última terça-feira, o colunista Luís Nassif levantou questões pertinentes sobre o abuso dessa modalidade de investigação. Seu alvo eram as muitas reportagens abusivamente atribuídas à famosa equipe econômica.

Aproveitei a deixa para anotar que a distorção afetava grande parte, talvez a maior, do noticiário sobre o governo Itamar Cardoso. No caso deste jornal, sem que as reportagens respeitassem norma do "Novo Manual da Redação", que manda identificar o "off" com a expressão "a Folha apurou".

Foi o caso, entre outros, da notícia sobre a escolha de Malan para a Fazenda (ironizada e depois confirmada). E também da indicação de Bresser para o Itamaraty (manchetada e depois revista).

Trata-se de uma distorção, sim. Embora a prática jornalística brasileira sugira o "off" como ferramenta básica de repórteres, ele contraria o direito à informação. Deve ser encarado como exceção, e nunca oferecido pelo próprio repórter, muito menos aceito, se o confidente não tiver motivos sólidos para manter-se em sigilo.

Não me parece que o anúncio a conta-gotas do "ministério possível" de FHC, todo ele em "off", se enquadre nessa exigência.

A identificação da fonte é crucial para a credibilidade de uma informação. O jornalista que admite a exceção não pode esconder do leitor que se trata de um "off", pelo simples fato de que o interesse no anonimato pode comprometer aquilo que se revela.

Afinal, não foi para esconder informações que Gutenberg inventou a imprensa.

O ombudsman estará de folga até o dia 2. Se você tiver alguma reclamação, deixe recado na secretária eletrônica ou mande fax. Na volta, respondo.
Feliz 1995 para todos.


Endereço da página: