Folha de S. Paulo


Gaviões e filhotes de perdiz

O "Novo Manual de Redação" afirma em sua página 72 que "a Folha retifica, sem eufemismos, os erros que comete". Em seguida, recomenda: "A retificação dever ser publicada assim que a falha for constatada, mesmo que não haja pedido externo à Redação".
O propósito da coluna de hoje é mostrar que estas regras não são cumpridas à risca pelo jornal que voluntariamente as formulou. Por duas razões básicas: a resistência - que muitos consideram natural - em admitir os próprios erros, por constrangimento ou arrogância, e um certo relaxamento nesta forma paradoxal de amor-próprio que é a autocrítica, e que já foi mais cultivada na Folha.
Usarei em minha argumentação alguns números e três casos exemplares: o da Gaviões da Fiel, o dos filhotes de perdiz e o dos "antônitos". Minha intenção, trazendo a público esses erros em sua extensão tragicômica, é reavivar o brio dos jornalistas da Folha. Um processo que, é preciso dizer, parece já ter começado.
Começarei pelos três casos e, entre estes, pelo mais recente:

Os gaviões - Anteontem, a seção Erramos republicou uma fotografia da torcida organizada corintiana Gaviões da Fiel, mostrando centenas de pessoas com os braços erguidos. Acompanhava a imagem a seguinte "retificação":
"A legenda da foto acima, publicada dia 20/11 em Esporte, erra ao afirmar que o gesto da torcida Gaviões da Fiel é 'réplica' da saudação nazista."
Era a conclusão lamentável de um episódio idem de desacordo entre ombudsman e Redação, a chamada emenda pior do que o soneto.
A reportagem que lhe deu origem tinha revelado muito da brutalidade e da boçalidade dessas agremiações e, obviamente, foi por elas contestada. Um dirigente da Gaviões procurou o ombudsman para dizer que havia cifras erradas e para negar que o gesto fosse nazista. Disse ele que se tratava de uma coreografia que acompanhava um samba da torcida, e que se erguiam os dois braços, não apenas um, balançando-os no ar.
Mandei comunicado à Redação pedindo que se apurasse a procedência ou não da queixa e que, em caso afirmativo, se publicasse Erramos. Os núemros errados foram prontamente corrigidos. Sobre a foto, porém, recebi da Redação a resposta: "Nem texto nem legenda apontam nazismo na torcida organizada".
Repliquei que a resposta era inaceitável, porque a legenda em questão não deixava dúvida, ao falar em "réplica de saudação nazista".
Na impossibilidade de oferecer resposta a este argumento, a Redação partiu para o que chamei de crítica interna de pirraça: omitiu a história da coreografia e reafirmou o "nazismo" do gesto recorrendo ao verbo-coringa "lembrar". Em meu comentário dirigido diariamente aos jornalistas da Folha, afirmei que a atitude "lembrava" má-fé e arrogância.
Observe a reprodução da foto, acima (pedi que se reproduzisse o mesmo corte da imagem publicada no Erramos). Preste atenção no torcedor do canto inferior direito, como camisa listada. Ele está com os dois braços levantados, a meu ver o melhor indício de que os Gaviões podem estar certos, algo que a Folha se recusa a esclarecer - uma satisfação que deve a seus leitores, não ao ombudsman.

Os perdigotos - já me referi ao caso do rodapé Na ponta da Língua do último dia 6, de passagem, mas volto a ele porque ilustra bem a variável do pudor na desobediência à regra da correção sem eufemismo.
No dia 24 de setembro, reportagem de Mundo afirmava misteriosamente que a peste pneumônica que assolava a Índia era transmitida por "filhotes de perdiz". Bem, é este, com efeito, o primeiro sentido da palavra "perdigoto", mas certamente a transmissão ocorria por gotículas de saliva (a segunda acepção do termo).
O Erramos publicado quatro dias depois - por coincidência, no dia em que assumi o cargo de ombudsman - era um primor de dissimulação. Aquilo que na intimidade da Redação se apelidou de Erramos-Mandrake: "A peste pneumônica é transmitida por gotículas de saliva, diferentemente do que informou o texto publicado na pág. 2-10, no dia 24/09".
Em minha estréia na crítica interna da edição, anotei: "O leitor perdeu a chande de dar boas risadas com o quinto Erramos de hoje, (...) O redator aparentemente agiu ao arrepio da máxima: vergonha não é reconhecer o erro, mas errar".

Os "antônitos" - Quando recebi o fax do leitor Alfredo Spinola de Mello Neto, quase não acreditei: ele apontava dois erros absurdos, as palvras "antônitos" e parinônimos", em um quadro da Primeira Página de 24 de outubro que deveria promover o fascículo do dicionário "Folha/Aurélio" que estava sendo distribuído naquela segunda-feira.
Fui conferir e estava lá, no lugar de antônimos ( o posto de sinônimos) e parônimos (palavras como som semelhante e significado diverso, como "descrição" e discrição"). Fiquei "antônito", para repetir o trocadilho do leitor. Erros de digitação desse calibre, e ainda por cima na Primeira...
Propus Erramos, mas não houve meio de persuadir a Redação. Argumentei que justamente por se tratar de texto sobre um dicionário, o jornal não poderia ter errado. Tendo errado, precisava corrigir. Não. Foram considerados "erros menores", que não mereciam Erramos.

Justiça seja feita: o jornal parece estar reagindo. Seja por influência do novo e detalhista ombudsman ou por outro motivo, o fato é que o jornal está publicando mais Erramos do que vinha fazendo. De 29 de setembro até anteontem, foram 192 notas, ou a média de 3,31 por dia. Nos dois meses anteriores, 147 (ou 2,37/dia).
Das dezenas de casos encaminhados à Redação até o último dia 18, a partir de erros apontados por leitores, somente dois tinham deixado de ser corrigidos, mais por falta de organização do que por malícia. Ambos - um relativo a Veículos, outra à Ilustrada - estava programados para publicação na edição de ontem.
Bem menos animador é o retrospecto das falhas apontadas nas críticas internas da edição, o documento redigido diariamente pelo ombudsman que circula na Redação até as 15h. No período de 28 de setembro a 18 de novembro, apontei possíveis erros em pelo menos 62 oportunidades. Somente 26 casos redundaram na publicação de retificações. Nas outras 36 vezes ficamos - os leitores e eu - sem respostas em Erramos.

Repito aqui e que já disse em outra ocasião é muito difícil fazer um jornal sem erros, mas muito difícil é fazer um bom jornal sem honestidade e sem coragem.


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