Folha de S. Paulo


Mostra de Di Cavalcanti na Pinacoteca dissolve imagem barateada do pintor

Luli Penna/Folhapress

Com quadros esplêndidos e pouquíssimo conhecidos (não havia notícias de "Samba" desde 1928), a exposição sobre Di Cavalcanti na Pinacoteca de São Paulo, em homenagem aos 120 anos de nascimento do pintor, redescobre um dos maiores artistas do modernismo brasileiro.

A reputação de Di Cavalcanti vinha sofrendo muito desde meados do século 20, em parte por culpa dele mesmo. Ficou sendo "o pintor das mulatas" —com tudo o que isso significa de condescendência, machismo, racismo e comercialização.

O mercado de arte está entupido desses retratos apressados de mulherões do Sargentelli, feitos na década de 1970, tão ruins que faz pouca diferença se são falsificados ou não.

Filiando-se ao Partido Comunista em 1928 (e a mostra da Pinacoteca apresenta alguns exemplos de sua rasgada crítica social), Di Cavalcanti reproduz, nas artes plásticas, a história de Jorge Amado na literatura: a temática popular foi perdendo em autenticidade para se transformar em autocaricatura, em turismo, em simplificação de telenovela.

Na exposição da Pinacoteca, que fica até janeiro do ano que vem, essa imagem se desfaz.

Sim, há "mulatas". Palavra esquisita, essa. Di Cavalcanti a emprega nos títulos de vários quadros. O que há são morenas, não poucas loiras, mulheres de pele mais clara ou mais escura, todas razoavelmente parecidas, com cabelos cacheados ou lisos, grandonas de corpo, retratadas sem especial "identificação étnica" para os olhos contemporâneos.

Objeto de desejo? Aí, a meu ver, a pintura de Di Cavalcanti começa a fugir da caricatura em que se transformou.

Uma coisa estranha nos grandes retratos femininos do pintor é que, sem dúvida, mulheres vestidas ou não ocupam o primeiro plano, e quase transbordam dele, num abandono de corpo evidentíssimo.

Mas a atitude delas não é de provocação, nem de convite, nem de pergunta. Elas estão quase sempre sonhando, e mesmo quando estão de frente seu olhar parece perdido para além de nós.

Exceção seria justamente o quadro "Samba", de 1928, vasto painel cuja redescoberta em parte compensa a destruição, num incêndio, da obra-prima de 1925 de mesmo título.

Na Pinacoteca, uma mulher realmente "escultural" dá um passo em direção ao espectador, surgindo entre seis ou sete figuras quase do mesmo tamanho. O quadro se organiza com muita arte, num triângulo disfarçado por leve diagonal, tudo entrecortado pelo ritmo de roupas listradas, com cores contrastantes.

Mesmo aqui, com a nudez da modelo bem delineada, sente-se o quanto a pintura de Di Cavalcanti se afasta do folclorizante e do turístico: o quadro é triste.

Na maioria dos quadros, há como que uma lacuna. Ele esquece tudo o que fica entre o primeiro plano e o que está, bem diminuído, no fundo.

Há, por exemplo, quadros com um enorme peixe na frente, e só o horizonte e um barquinho muito ao longe. Personagens do Carnaval ou de um quarto de bordel tomam conta da tela, com breves menções ao casario atrás.

O plano "intermediário" aparece pouco na perspectiva desse que é visto como o pintor das mestiças, dos subúrbios, da boêmia, de quem tem posição ambígua na estrutura de classes do Brasil.

A "gente do meio", "desclassificada" (não há operários ou camponeses em geral), ocupa a frente do quadro. Há quem dê a interpretação de que Di Cavalcanti mostra os trabalhadores, sim, mas em repouso, nos momentos de lazer, de descanso.

A mim, parecem mais em estado de esperança, com um fundo de horizonte muito nostálgico, quase como uma recordação, a preencher o pouco que sobra no alto do quadro.

Mais que o pintor das "mulatas", Di Cavalcanti é um grande pintor "negro" —refiro-me também às tintas escuríssimas de muitos quadros seus, como a excepcional, em mais de um sentido, "Descida da Cruz" que ele pintou depois de abandonar o Partido Comunista.

Como observado no catálogo da mostra, há em Di Cavalcanti, por vezes, a trágica visão das gravuras de Goeldi e, com mais sutileza, as cores claras de Tarsila do Amaral. Junte Guignard e Toulouse-Lautrec, Picasso e George Grosz.

O resultado seria uma salada, mas não é. Não é nem mesmo um Carnaval. É um Brasil triste, mergulhado na sombra e na dúvida, onde um clarão de flor, de pele e de vestido abre, talvez, seu espaço de sonho.


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